Aqui se faz, aqui se praga.
Eu nunca tinha percebido, até fevereiro do ano passado, que o brasileiro é um povo pra lá de supersticioso. Talvez porque eu tenha sido criada na macumba, apesar da escola católica e das aulas de catecismo (das quais me salvei graças aos argumentos fornecidos pelo evolucionismo, na quinta série), ou talvez porque minha asma infantil tenha me tornado o objeto familiar diário de um sem número de simpatias bizarras, como cuspir em boca de peixe e comer besouro (todo vizinho tinha uma simpatia maneira pra ensinar à minha avó), ou, sei lá, talvez a culpa seja mesmo da tia messiânica que me viciou em johrei, ou da homeopatia e dos florais de Bach, que muitas vezes, pelo menos pra mim, não passam de uma espécie de fé. Não sei. Só sei que eu sempre achei muito natural fazer sinal da cruz ao entrar no mar ou passar na frente de igreja, sempre achei óbvio passar reveillon de branco com calcinha amarela e chupar sete caroços de romã no Dia de Reis, e não tem dia 29 em que eu não me esforce pra comer gnocchi com um dólar debaixo do prato. Portanto, eu sei -- simplesmente sei -- que é forçação de barra dizer que eu sou uma criatura de todo cética.
Na verdade, sou uma amálgama de religiões. Seria saudável, imagino, se eu aprendesse a rejeitar algumas, porque não saber o que é ou não tabu numa sociedade onde vigora o sincretismo católico-hipócrita é muito confuso às vezes. Quando pequena, por exemplo, por saber que meu pai (o original de fábrica) era um fantástico entusiasta do candomblé -- a ponto de saber cozinhar a faroja preferida de um determinado exu, ter todas as fitas de música de terreiro e aulas de atabaque --, uma vez lhe pedi que desligasse a "música de macumba" do dodge quando nos aproximávamos do território inimigo da escola de freiras. Foi um momento muito difícil, porque papai dizia que "Jesus Cristo", do rei Roberto Carlos, "não é macumba, filha", e eu apenas chorava desesperada, na certeza de que ele estava mentindo só para ACABAR com a minha reputação junto àquelas criatura malévolas e imprevisíveis, defensoras de kichutes e quetais.
Longe de ser uma criança, ainda hoje me sinto vulnerável ao maniqueísmo da fé. Parei de ir a tarólogos e me reservo o direito de manter uma distância segura de pessoas que vêem fantasmas atrás de mim, porque espírito desencarnado de cu é rola, saravá, e já me bastam os vivos para temer.
Ontem eu tive a prova de que não estou sozinha na minha fé às avessas, aquela que só teme as punições pelas coisas terríveis que eu nunca fiz (mas vá saber o critério em vigor no além!). Estava num ônibus na Jardim Botânico quando entrou uma senhora com duas crianças entre 7 e 10 anos. Ela tentou passar uma criança por cima e outra por baixo da roleta, mas esse era um daqueles ônibus com a roleta na porta e uma suposta microcâmera na entrada para evitar caronas, então o motorista freiou o carro e a impediu de passar a meninada sem pagar a passagem de R$2,40. Seguiu-se um curto diálogo:
- Ô, moço, eu despenquei de Nova Iguaçu pra visitar uns parente-doente aqui, essas criança é especial, não paga passagem em ônibus nenhum.
- Não posso deixar, senhora. Este ônibus tem câmera.
A trocadora avisa que o ônibus os deixará no próximo ponto, a senhora se sente humilhada e desce do carro dizendo, com um olho apertado assustador, colado no olho do motorista:
- As criança tudo especial... Isso vai te pesar, moço. Se prepara, que você vai se arrepender, ham!
E desceu. Seguiu-se um silêncio pesado, que a trocadora quebrou, dizendo:
- Reza, meu filho, que quando a gente reza, a praga não pega.
- Mas eu não fiz nada!, diz o motorista. Podia deixar? Não. Então a culpa é do patrão!
Eu não pude deixar de achar maravilhosa essa terceirização da culpa. E a trocadora, que aparentemente é mais espiritualizada e tonta que o motorista, diz:
- É, mas ele não tá aqui pra pegar a praga que rogam na gente, tá? Então é melhor você rezar pro seu próprio bem.
O motorista suspira, contrariado, e eu penso, cá com os meus botões: não sei o que surgiu primeiro, se o ovo ou a galinha; se o amor ao divino ou o medo do castigo. De qualquer forma, acho que nenhuma religião teria qualquer tipo de chance de vingar se o ser humano fosse de todo destemido. E eu acho, sinceramente, que amor e medo não combinam muito bem.
Na verdade, sou uma amálgama de religiões. Seria saudável, imagino, se eu aprendesse a rejeitar algumas, porque não saber o que é ou não tabu numa sociedade onde vigora o sincretismo católico-hipócrita é muito confuso às vezes. Quando pequena, por exemplo, por saber que meu pai (o original de fábrica) era um fantástico entusiasta do candomblé -- a ponto de saber cozinhar a faroja preferida de um determinado exu, ter todas as fitas de música de terreiro e aulas de atabaque --, uma vez lhe pedi que desligasse a "música de macumba" do dodge quando nos aproximávamos do território inimigo da escola de freiras. Foi um momento muito difícil, porque papai dizia que "Jesus Cristo", do rei Roberto Carlos, "não é macumba, filha", e eu apenas chorava desesperada, na certeza de que ele estava mentindo só para ACABAR com a minha reputação junto àquelas criatura malévolas e imprevisíveis, defensoras de kichutes e quetais.
Longe de ser uma criança, ainda hoje me sinto vulnerável ao maniqueísmo da fé. Parei de ir a tarólogos e me reservo o direito de manter uma distância segura de pessoas que vêem fantasmas atrás de mim, porque espírito desencarnado de cu é rola, saravá, e já me bastam os vivos para temer.
Ontem eu tive a prova de que não estou sozinha na minha fé às avessas, aquela que só teme as punições pelas coisas terríveis que eu nunca fiz (mas vá saber o critério em vigor no além!). Estava num ônibus na Jardim Botânico quando entrou uma senhora com duas crianças entre 7 e 10 anos. Ela tentou passar uma criança por cima e outra por baixo da roleta, mas esse era um daqueles ônibus com a roleta na porta e uma suposta microcâmera na entrada para evitar caronas, então o motorista freiou o carro e a impediu de passar a meninada sem pagar a passagem de R$2,40. Seguiu-se um curto diálogo:
- Ô, moço, eu despenquei de Nova Iguaçu pra visitar uns parente-doente aqui, essas criança é especial, não paga passagem em ônibus nenhum.
- Não posso deixar, senhora. Este ônibus tem câmera.
A trocadora avisa que o ônibus os deixará no próximo ponto, a senhora se sente humilhada e desce do carro dizendo, com um olho apertado assustador, colado no olho do motorista:
- As criança tudo especial... Isso vai te pesar, moço. Se prepara, que você vai se arrepender, ham!
E desceu. Seguiu-se um silêncio pesado, que a trocadora quebrou, dizendo:
- Reza, meu filho, que quando a gente reza, a praga não pega.
- Mas eu não fiz nada!, diz o motorista. Podia deixar? Não. Então a culpa é do patrão!
Eu não pude deixar de achar maravilhosa essa terceirização da culpa. E a trocadora, que aparentemente é mais espiritualizada e tonta que o motorista, diz:
- É, mas ele não tá aqui pra pegar a praga que rogam na gente, tá? Então é melhor você rezar pro seu próprio bem.
O motorista suspira, contrariado, e eu penso, cá com os meus botões: não sei o que surgiu primeiro, se o ovo ou a galinha; se o amor ao divino ou o medo do castigo. De qualquer forma, acho que nenhuma religião teria qualquer tipo de chance de vingar se o ser humano fosse de todo destemido. E eu acho, sinceramente, que amor e medo não combinam muito bem.
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