Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sábado, março 27, 2010

O sorriso de Alice com os gatos



Minha prima Alice recebeu um presente inesperado na antevéspera de seu aniversário: abandonaram à porta de sua casa, dentro de uma minúscula caixa, 5 gatinhos recém nascidos ainda molhados de útero.


A primeira coisa que a gente pensa nessas horas é que só uma pessoa muito má poderia retirar os filhotes recém nascidos de uma gata e abandoná-los à morte. Sem o calor, os cuidados, o alimento e a imunidade da mãe, é realmente muito difícil salvar um neonato felino. Minha prima me ligou pra pedir ajuda, e como ela nunca tinha me pedido nada na vida, eu fiquei tão emocionada que cheguei a conjecturar que a pessoa supostamente má que fez uma coisa tenebrosa dessas poderia ser, na verdade, uma pessoa medianamente boa que, ante a hipotética morte trágica puerperal da gata-mãe, e diante de sua própria miséria humana e inabilidade financeira e/ou emocional para lidar com situações críticas, tenha delegado a responsabilidade de cuidar da órfã ninhada a alguém inequivocamente responsável, fodaço e raçudo como ela, Alice, que jamais esmoreceria ao primeiro obstáculo. Satisfeitas com este postulado, porque é muito ruim sobreviver à suposição de que o mundo é fundamentalmente mau, passamos à execução do décimo terceiro trabalho de Hércules que é cuidar de filhotes recém-nascidos que não sejam seus (nem tampouco de sua espécie).

A medicina neonatal de cães e gatos tenta evitar as três piores coisas que podem acontecer com um filhotinho: a desidratação, a hipoglicemia e a hipotermia. A mãe, que tem temperatura corporal em torno de 38, 39 graus Celsius e pelos que isolam os filhotes das grandes variações de temperatura, não só funciona como uma fonte irradiante de calor, como oferece, através do colostro, todo o líquido e energia de que os filhotes precisam. Depois de cada mamada, a mãe lambe os genitais dos filhotes para estimular a micção e a defecação (sim, ela come bastante cocô nesta fase), e os filhotes neonatos que não são lambidos não conseguem urinar ou defecar. Na ausência da mãe, obviamente, a babá terá de fazer isso tudo: aquecer, amamentar, lamber e comer xixi e cocô. 

Se eu tivesse filhos; se eu não pudesse cuidar deles como uma mãe tem de cuidar dos filhos; se eu pudesse escolher outra criatura pra fazer isso por mim; se eu fosse uma gata (e, portanto, precisasse que essa outra criatura não só amamentasse, como também aquecesse e comesse o cocô-xixi de meus filhotes por mim); eu acho que doaria um rim, uma córnea, um braço e uma perna pra minha babá. Mesmo que ela não precisasse. Só por gratidão mesmo.

Cuidar dos filhos dos outros desperta algum instinto maluco na gente. O cuidador, e eu só posso falar por mim, se sente iluminado. Talvez isso seja o mais próximo de ser mãe que uma pessoa não-mãe pode chegar. Se eu acreditasse em Deus, este seria o momento em que eu olharia pra ele e diria: "Ó, tá vendo? Registrou, registrou?", e com isso eu teria certeza absoluta de que meu lugar no céu estaria garantido. Eu não entendo o cérebro humano, mas tenho certeza de que ele é o culpado dessa viagem toda.

Desde quarta-feira eu estou dividindo com minha prima as funções de uma babá de gatos: eu cuido dos bichinhos de dia, ela de noite. No primeiro dia, além de babá, precisei ser veterinária deles porque dois dos filhotes estavam com uma micro bicheira no ânus. Um desses morreu. Dois já tinham morrido quando eu vi a ninhada pela primeira vez. Agora restam dois, mas os dois estão animadíssimos, mamando loucuras e miando alto de hora em hora, como se pedissem mais leite e mais calor. Por sorte, uma gata em meu trabalho pariu nesta quinta-feira. Pareceu-nos uma chance de ouro de salvar os gatinhos sem precisar virar noites em claro por isso. Tentamos misturar os gatinhos da Alice com os filhotes naturais da gata. Ela aceitou os mais velhos como se isto fosse a coisa mais natural do mundo: abocanhou-os pelo dorso e levou-os pro seu ninho, deu-lhes um tremendo banho de gato e colocou-os para mamar, arreganhando o ventre peludo pontilhado de tetas o quanto podia para o conforto dos bebês. Naquele dia, apostamos que eles passariam a melhor noite de suas curtas vidinhas, mas por algum motivo os filhotes da Alice amanheceram bem mal no dia seguinte. Os filhotes naturais da gatinha, no entanto, estavam ótimos. Chegamos à conclusão que os gatos da Alice precisam de uma babá full-time. O Glauco, meu guru veterinário, montou uma UTI neonatal pela manhã, ressuscitou os filhotes da minha prima e eles passam bem até agora. Já têm 5 dias de vida. Ainda há chances de que sobrevivam por 15 anos. Alice sorri com esta possibilidade ainda remota. 

Um dia, os gatos de Alice também sorrirão quando lembrarem de tudo isso. E talvez eles ainda sintam cheiro de PetMilk toda vez que eu estiver por perto.