Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quinta-feira, novembro 10, 2005

A morte da tirana

A morte lhe espreitava, mas nada nela traduzia singeleza. Era de uma soberba insuperável: o ar austero, a voz firme, os gestos de monarca. Como rainha, tivera súditos fiéis, abnegados, que lhe satisfaziam todos os caprichos. Apesar disso, a vida não a ensinara a manter-se dileta: vivia seus últimos dias a disseminar a ira, a culpa, a cizânia. O caos e o desamor seriam seus maiores legados.

No início do fim, ainda se notava a romaria de legiões de súditos ao leito de morte da rainha austera. Ela fazia questão de ter a mão, escarificada pela alastrante doença, beijada por todos. Como é de se imaginar, a idéia de beijar uma chaga não era nada atraente, mas a rainha parecia se divertir com o horror que impingia a quem lhe adorava. E, findo cada beijo, mandava que os enfermeiros lhe desinfetassem a mão, como se fosse ela própria a ofendida. As visitas rarearam. Os enfermeiros se demitiram. Os médicos a desenganaram. Na cidade, ninguém mais falava nostalgicamente sobre os belos trajes de gala da rainha. Quando muito, comentavam que ela ainda não tinha morrido. Ainda.

Passaram-se dias, semanas, meses, até que alguém notou a aia real surgir lívida na praça da matriz. "Morreu?", perguntaram aqueles que ainda se lembravam da possível existência de uma rainha moribunda. "Não", disse aflita, "Ficou curada!". A notícia da recuperação inesperada da arrogante nobre alastrou-se pelos prados, voou com os sinos e chegou ao herdeiro do trono, que gozava de merecidas férias antes de assumir seu posto a frente do Reino. "Impossível!", exclamou o príncipe, e tocou seu cavalo mais veloz para ver com os próprios olhos a mãe recuperada.

Mas qual o quê! A rainha soberba estava morta há meses em seu leito quando recebeu a visita do filho que a esquecera. Seu corpo parcialmente descarnado exalava um odor pútrido como cadáver algum jamais ousara emanar. Fazendo-se um esforço sobre-humano para permanecer na câmara real por mais que alguns segundos, era possível notar um discreto sorriso de escárnio na morta. Indignado, o príncipe exigiu da criada explicações acerca da mórbida piada. Ainda trêmula de pavor, ela disse, ajoelhando-se a seus pés: "As últimas palavras por ela proferidas foram: 'Faça-o ver a mãe morta e decomposta ou eu condenarei seus antepassados ao fogo do inferno.' Suplico-lhe que me perdoe, meu rei, mas eu não poderia viver com tamanha maldição."

Os dedos da rainha morta estavam recobertos de anéis de ouro e pedras pelos quais passeavam larvas e insetos carniceiros. Morrera sorrindo, sem perder a tirania. Morrera tarde, mas pelo menos... morrera.