Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, maio 17, 2006

Violino


Eu tenho uma tia que um belo dia acordou de saco cheio de tudo, abandonou o emprego público e o privado, fez uma malinha contendo 50% de cremes e perfumes e se mandou pra Nova York em busca do sonho americano. Na ausência deste, acabou se rendendo ao sonho do matrimônio, tendo para isto que se converter ao judaísmo antes de passar a assinar Kauffman. Desde a conversão, ela passou a freqüentar a sinagoga sem ter deixado de ir à missa aos domingos, o que lhe deu uma visão crítica comparativa das duas religiões, quiçá três, que nas férias no Brasil sempre rolava uma macumbinha, uma consultinha básica ao preto véio. Coisas de uma família ecleticamente religiosa.

Pois foi justamente o convívio de minha tia com a alta sociedade WASP (e, vamos combinar, judaica!) de Nova York que nos apresentou à vida orgânica dos Amish e ao VHS duplo do seriado musical da BBC "A Fiddler on the roof". Mesmo sem falar muito inglês naquela época, eu e minha irmã assistíamos ao filme direto; por causa da cena de abertura, em que um violinista se equilibra no telhado iluminado pelos vermelhos do crepúsculo enquanto arranca um som rascante do instrumento, Samantha, a caçula, cismou: queria aprender a tocar violino. Como tudo que ela pedia era um ordem, que caçula tem dessas coisas, meu pai comprou-lhe um violino, instrumento absolutamente estranho neste ninho de MPB e samba. Samantha, a loura de olhos verdes numa família de morenos, sempre gostou de ser a diferente. Não levei a menor fé no futuro daquela relação Sam-violino, mas, pra minha surpresa, em pouco tempo ela estava tocando uma versão melancólica de Asa Branca que me arrancava lágrimas. Ela tocava e pedia pr'eu cantar, mas eu morria de pena de competir com o instrumento, que o violino tem voz própria, e é constrangedor cantar junto de quem canta mais bonito. Mas ela insistia, e toda tarde nós nos reuníamos em torno de xeroxs de partituras e passávamos horas naquilo até meus pais chegarem e pedirem um repeteco dos melhores momentos.

Três anos mais tarde, foi a vez de minha irmã ir pra NYC em busca do sonho americano. Pode-se dizer que ela fugiu de casa, porque a danadinha foi para passar só um mês, ficou um ano, veio ao Brasil pra pegar umas roupinhas, aí passou a vir uma vez por semestre pra renovar o visto de turista e, depois de 5 anos, nunca mais voltou. O violino ficou mudo de tristeza, guardado num armário por 15 anos na esperança de que ela voltasse, talvez por saudade dela, talvez por saudade da Asa Branca que ela reinventou, talvez pelo sim, pelo não, talvez porque ela poderia não gostar que alguém usasse o violino dela, talvez pelo mesmo motivo que faz uma mãe arrumar todos os dias o quarto do filho morto. Só sei que o violino virou um vínculo nosso com essa caçula desgarrada, e por isso foi tão difícil convencer meu pai a dá-lo pra alguma criança que quisesse aprender, mas não tivesse condições de comprar um instrumento tão caro.

Levei 5 meses pra convencer meu pai. Uma vez convencido, mas cheio de condições (que o violino não fosse de uma criança só, mas de um escola que atendesse a várias crianças), ele deixou o violino comigo pra que eu o levasse à Laura Rónai, irmã da Cora que vive e respira música e que saberia dar destino bom ao violino-irmã. Aí foi minha vez de travar, e eu levei 3 semanas pra conseguir executar o desapego da entrega. Ontem, eu finalmente enfiei o instrumento no carro e dei-lhe destino. No caminho, a cada parada em sinal, eu olhava pro banco de trás e o via naquela caixa, parecendo uma múmia embalsamada, e sentia um profundo sentimento de tristeza, como se todas as cores daquelas tardes de música estivessem se esvaindo da minha retina. Como se agora fosse definitivo: Samantha não voltará mais pra casa.

E aquela música do Caetano que a Sam tocava no violão não me saía da cabeça:


Amanhecendo sim perto de mim
Perto da claridade da manhã
A grama, a lama, tudo é minha irmã
A rama, o sapo, o salto de uma rã

Eu te amo, sua fedelha.