Fear Not
Descobriram muito cedo que aquele menino não conseguia sentir medo, pois estórias de bicho papão e bruxas que devoram tripas de crianças que não dormem o mantinham mais-que-acordado -- de janela aberta, quarto bagunçado, notas vermelhas e sapatos virados pra baixo --, na expectativa ansiosa da visita dos seres malignos fantásticos que seus pais criavam para obrigá-lo a ser bonzinho. Não quero que vocês julguem mal os pais desse menino, que doravante chamarei de FearNot, pois ele existiu numa época remota em que os pais ainda faziam coisas estúpidas pra manter seus filhos controlados, já que o Fantástico nunca tinha exibido uma matéria elucidativa sobre DDA e hiperatividade infantil, nem tampouco existiam escolas experimentais onde a maconha é empregada no recreio como indutora da paz, nunca havia se ouvido falar em psicopedagogia moderna, muito menos em livros de auto-ajuda para pais de primeira viagem.
Pois FearNot era o cão chupando manga em matéria de bravura. Pegava taturana, lacraia e escorpião na mão, aprendeu a cuspir fogo com um palhaço de circo e incendiou sua própria casa, por diversão, 39 vezes, só pra ver a cara de susto de seus pais, dos vizinhos e dos fantásticos, lindos e marombados (isto é por minha conta) bombeiros. Cara de susto, medo e pavor era, pra ele, um verdadeiro enigma: FearNot não entendia bem o que queriam dizer pupilas dilatadas, pêlos eriçados, gritos de pavor e lágrimas de desespero. O motivo para isto era um só -- não que fosse um menino mau, pelo contrário! --: ele tinha um defeito neurológico central congênito raríssimo que o fez nascer sem o pedaço da massa encefálica que sente medo e induz todas aquelas respostas fisiológicas do estresse que fazem um ser vivente se virar, em desespero, pra salvar a própria vida.
Fartos dos atos tresloucados de bravura do atentado capetinha, a esta altura um adolescente garboso, seus pais procuraram um bom pai-de-santo & exorcista, com quem encomendaram um despacho pro Exu Caveira, na porta de um cemitério, pra abrir um portal mágico pro menino entrar (sozinho) num reino tão-tão distante, onde havia perigos reais: dragões, bruxas, senadores corruptos e um pântano assombroso, com árvores retorcidas e cheias de espinhos, onde o sol nunca chegava: o Pântano do Planalto Central. Nesse reino, morava uma linda princesa que estava sendo oferecida por seu inescrupuloso pai, o Rei José Dirceu, em troca de uma mala contendo um volumoso mensalão; a mala sem alça estava escondida no mar de estrume do tal pântano assombroso. Embora a princesa fosse mais bonita que Gisele Bündchen e mais inteligente que a Cora Rónai, nenhum cavalheiro se atrevia a enfrentar os perigos das trevas para, mensalão no bolso, obter a mão da moça em paga. Alguns tinham tentado, como o valente Sir Edward Suplicy, mas foram todos devorados pelo esquemão e nenhum tinha conseguido retornar ao reino da luz.
Sabendo daquilo tudo, nosso impávido-colossal herói, FearNot, pediu pra conhecer a princesa. Falando sério: foi amor à primeira vista! A sinastria dos dois era perfeita, eles curtiam as mesmas bandas de rap, samba-funk e rock, tinham as mesmas músicas em seus respectivos Ipods e não tinham lido os mesmos livros -- o que é, na adolescência, uma coincidência brutal. Tudo isto posto, FearNot prometeu ao Rei Dirceu dar um pulinho no pantanoso e tenebroso Planalto Central e retornar com aquela mala cheia de dinheiro e merda em menos de 48h.
Foram as 48h mais divertidas da vida do rapaz. Ele viu bruxas, mouras tortas, mulas-sem-cabeça, sacis, curupiras, vampiros, lobisomens, dragões de vinte cabeças cuspidores de fogo, e se ria tanto de tudo que via, que os monstros ficavam até constrangidos. Quando engolido por um ser híbrido de crocodilo com tubarão, FearNot riu tão alto que explodiu o bucho do bicho com suas gargalhadas ultra-sônicas, e teve de controlar seus espamos de riso pra seguir a jornada em busca da mala sem alça do Lulla. Encontrou-a por acaso numa caixa de correio, aguardando uma licitação ilícita. Feliz da vida com sua conquista, retornou ao Reino tão-tão distante para obter a mão de sua noiva em casamento.
Lá chegando, no entanto, FearNot sentiu um climão geral. Não havia festa nem os cortejos que ele esperava que fosse encontrar ao retornar com a relíquia. Os súditos choravam quando o viam e andavam cabisbaixos. No castelo real, ele soube o porquê: a princesa estava deitada em seu lindo e sedoso leito de morte, o sangue lhe escapando à face e respirando cada vez mais lentamente, como se estivesse apenas aguardando o retorno de seu herói pra lhe oferecer o último suspiro.
Ela tinha contraído gripe aviária, uma importante zoonose que FearNot carreou, sem querer, do galo preto da macumba diretamento pro ao Reino tão-tão distante.
Os médicos estavam muito pessimistas e deram seus pêsames ao rapaz, frustrado à beira do altar por uma fatalidade viral virulenta. Então, diante daquele cenário de tristeza e luto, FearNot debruçou-se sobre a princesa, sacudiu-a pelos ombros e implorou para que ela não morresse; disse, entre soluços que fariam chorar o mais durão dos machões, que, se ela morresse, ele não poderia seguir vivendo. E neste exato momento, as pupilas do menino se dilataram, seus olhos se encheram de uma água inédita, seus pêlos se eriçaram e FearNot emitiu um grunhido que até hoje não se sabe se foi um urro ou um grito de horror, mas que foi registrado em todos centros de sismologia do planeta como uma iminência de tsunami. E, de fato, em poucos segundos o quarto da princesa virou um oceano de lágrimas com ondas gigantes e, no meio daquele mar de medo de perder o ser amado, a moribunda flutuou e, como que por encanto, ficou curada de sua gripe.
FearNot, então curado de seu defeito neurológico congênito, passou a compreender o que significava o medo. E teve muito medo de sentir isso de novo. Por isso, casou-se com a princesa, mudaram-se pras ilhas Seychelles, onde pode se viver perfeitamente com o dinheiro sujo que o sogrão mandava todo mês, tiveram quatro filhos e foram felizes (e medrosos de perder um ao outro) para sempre.
The End
PS: este conto foi descaradamente roubado (e adaptado livremente por mim) de uma série da BBC chamada "The Story Teller", um dos programas de TV mais bonitos do mundo.
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