Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, setembro 01, 2009

Profissão: motociclista ou repórter (quem dá mais?)

Quando percebi que minha carteira de motorista estava prestes a vencer, decidi que em vez de simplesmente renová-la, eu aproveitaria todo aquele megaloprocesso burocrático hercúleo - que parece ter sido estrategicamente planejado por psicólogos-psicotécnicos especializados em artimanhas para o contribuinte desistir no meio - para fazer uma inclusão de categoria de habilitação. Dentre as categorias disponíveis, eu poderia me habilitar para a condução de ônibus, caminhão, jamanta ou moto, então eu fui modesta e decidi que moto, pelo menos pra mim, que sou mignon, estava bacana. Ademais, moto é um veículo econômico, ergonômico, maleável, cabe em qualquer cantinho e, portanto, não é tão difícil de estacionar quanto uma jamanta, e a questão do estacionamento nunca pode ser sublimada nesta cidade. Ter um carro grande, aqui, muitas vezes pode significar ter de estacionar no Grajaú para então andar até a Lapa, onde seus amigos todos te esperam num barzinho lotado.




Foi só eu decidir minha nova categoria, que imediatamente surgiram em minha adoentada mente imagens glamorosas de divas do cinema deslizando sobre vespas, metidas em calças saint-tropez com uma blusa xadrez amarrada acima do umbigo, um charmoso lencinho amarrado ao pescoço e sem qualquer vestígio de capacete, claro, que na época das divas, o cabelo era mais importante que a segurança. Mas como os tempos são outros, eu totalmente me imaginei andando numa moto mais modernosa, com um capacete minimalista e óculos penélope charmosa. Agora só faltava a habilitação, depois o capacete ideal, depois os óculos ideais, depois a jaqueta de couro ideal e aí, por fim - justamente por ser o menos importante - a moto mulherzinha ideal.


La donna è mobile sobre uma Guzzi.

No mundo real, no entanto, eu já tinha a mais completa noção de que jamais teria coragem de andar de moto no Rio de Janeiro, porque eu sou daquelas que se cagam de medo de assalto quando estão sozinhas e precisam parar o carro - carro, efetivamente, com portas que travam e vidros com janelas que fecham - num sinal de trânsito qualquer repleto de pedintes. Se eu sou assim de carro, imagina o ataque de pânico que eu não teria estando vulnerável sobre uma moto, à mercê de meliantes que podem, na ausência das barreiras físicas do carro, efetivamente tocar suas vítimas e até lhes arrancar pedaços de orelha e nariz com cacos de gilete e, quiçá, com os dentes. Tem mais gente ruim e raivosa nesse mundo do que supõe nossa vã filosofia.

Então, como vocês podem imaginar, eu já entrei no processo de habilitação sabendo que só subiria na minha Ducati ou na minha Vespa novinha em folha se fosse pra passear às margens do Sena ou do Tibre, ou pra tomar uma fresca numa colina qualquer da Toscana, ou seja, em lugares quase tão bonitos quanto o Rio, mas onde ainda é possível beber quantidades moderadas de um bom vinho e conduzir uma boa moto sem o risco de ser alvejado à queima roupa por três balas na cabeça sobre seu veículo ou dragado por um buraco no asfalto que o meu, o seu e o nosso IPVA não é capaz de tapar porque os políticos e os malfeitores em geral são sempre mais criativos que o homem de bem.

Na verdade, à medida que a minha certeza [de que eu nunca teria culhão pra andar de moto no Rio] se consolidava, eu ia perdendo o interesse no processo de habilitacão, que não tem validade quando se trata de inclusão de categoria, então deixei a coisa correr solta por quase um ano, até que finalmente chegou a hora do dá ou desce: ou eu fazia a prova prática e passava, ou minha carteira de motorista perderia a validade e eu teria de refazer todo o processo hercúleo de pagar DUDA, marcar ida ao Detran, fazer exame médico, prova teórica, etc. Ah, porque uma coisa tem que ficar bem clara: se você faz a prova teórica e o exame médico para inclusão de categoria, esses exames, embora sejam exatamente os mesmos exigidos para a renovação pura e simples da habilitação - não podem ser aproveitados de um processo para o outro. O sistema do DETRAN não suporta esse tipo de promiscuidade. Aliás, o DETRAN não suporta que as pessoas tenham uma vida e mais o que fazer de seu tempo que passar dias, semanas e até meses na linha tentando agendar uma porra de uma visita. Tudo isto posto, achei mais prático pedir pra motoescola marcar logo minha prova prática de moto. Afinal, quase um ano de aulas deveriam ter algum tipo de serventia. Então no dia marcada, lá fui eu pro Parque dos Patins, na Lagoa, fazer a minha coisa e resolver logo essa pendência na minha vida.

A Prova Prática de Habilitação para Motociclistas

A prova é muito bem bolada: o percurso começa numa baliza com vários cones (para testar a destreza do condutor), passa por uma prancha com cerca de 5 metros (para testar o equilíbrio), por um redutor de velocidade, contém zigue-zagues (para testar a capacidade do ser humano de usar seta pra direita ou esquerda e depois, a coisa mais difícil de todas em se tratando de um veículo que não faz isso automaticamente, desligar a seta), um oito duplicado e, ao final, o condutor entra num retão com marcações para passar a terceira, depois a segunda, depois a primeira e, finalmente, frear, pôr o pé esquerdo no chão, colocar a moto em ponto morto, desligar o farol, desligar o motor e conduzir o veículo, a pé, por entre 3 cones. Isto serve para testar a habilidade do condutor de carregar a moto quando ela estiver bêbada demais pra andar com as próprias pernas.

Duzentos motoboys depois, quando chegou a minha vez, eu fiz tudo isso. Para meu total choque e horror, contudo, o avaliador do Detran chegou ao lado da minha orelha e disse:
- OK, você foi reprovada.
- Oi?
- Você foi reprovada porque deixou [a moto] morrer.
- Deixei morrer? Ah, moço!.. (grossas lágrimas começam a descer pelo meu rosto) Deixei, não, moço... (minhas mãos ficam geladas)
- Deixou, sim.
- Moço, olha aqui como não deixei (e virei a chave na ignição pra mostrar que a moto realmente estava em ponto morto; quando a moto morre, geralmente está engrenada). Eu verifiquei com a palma da minha mão que o farol estava ligado e só então eu o desliguei. O farol desliga quando a moto morre, moço, e eu sei o que é uma moto morrer, porque afinal eu fiz isso acontecer umas 157 vezes nesse ano inteiro em que eu tive aulas de condução.
- Olha aqui, eu não tenho motivo algum pra lhe prejudicar.
- Então me diz, por favor: por que você está prejudicando?!?
- Ó, a nossa conversa acabou aqui.

E acabou mesmo. Eu ainda tentei, mas ele já tinha se embrenhado entre os colegas de jaleco azul dele e não teve jeito. A maré subiu na Lagoa Rodrigo de Freitas, tamanho era o fluxo lacrimoso que eu vertia em cima da minha ficha de avaliação onde se lia a maior das injustiças: REPROVADA.

Confesso que eu teria ficado incrivelmente triste se eu tivesse, durante a prova, atropelado um cone - embora eu sempre pense que antes atropelar um cone que um cachorrinho -, mas eu fiz uma prova perfeita, meu próprio instrutor de moto estava lá e viu (e nem ele acreditou no que viu), mas a prostração que eu senti por ter sido vitimada por tamanha injustiça era algo que eu não experimentava desde a época do kichute. Ou desde que o Brasil perdeu a Copa do Mundo na França. Caí de cama.

Dois dias depois, comecei a achar que o avaliador do Detran, na verdade, queria que minha primeira frase fosse algo no estilo "claro que deixei morrer, chefia! E, muito cá entre nós, em quanto fica esse lapso tenebroso?". No terceiro dia, pensei que meu instrutor também fazia parte do esquema de corrupção, afinal ele tinha visto eu apagar o farol e não falou nada em minha defesa, deixou o avaliador sustentar a mentirada toda. No quarto dia, pensei em denunciar todo o esquema à Polícia Federal; no mesmo dia, à noite, achei que seria mais modesto denunciar antes pro Globo. Aí, porque eu sou brasileira e passaram-se muitos dias, eu esqueci.

Da próxima vez, talvez valha à pena eu perguntar ao avaliador, antes da prova, o que eu preciso fazer pra minha moto não morrer no final. Afinal, só tem um dono da verdade ali, e toda verdade parece ter seu preço. Espero que ele não note que está sendo filmado, porque eu prefiro vender o furo a tirar carteira de motociclista.