Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, junho 27, 2006

Kichute é uma merda.

Era uma menina-boneca: apesar dos míseros cinco anos de idade, só se sentava de pernas cruzadas, cuidando pra que o plissê da saia escolar não amassasse. No ballet, era a primeira da fila do baby-class e a orgulhosa portadora do coque mais impecável, do qual não cogitava fugir nem um fio atrevido. Não foi à toa que o-d-i-o-u quando a madre superiora entrou na sala de aula da escola em que estudava para anunciar que, dali pra frente, o kichute - calçado econômico, resistente e apropriado para as brincadeiras do recreio - passaria a ser permitido como parte do uniforme. Não que antes daquele anúncio as crianças já não o tivessem adotado: todas na sala de aula, à exceção da bonequinha e seu pretinho de verniz, gritaram de alegria, colocando por cima das carteiras e uns dos outros, como se exibe o troféu de um grande prêmio, seus indomáveis e horrorosos kichutes.

Aquilo foi o fim pra bonequinha, que ficou remoendo um ódio incontrolável da madre superiora, imaginando que ela certamente recebeu alguma propina ou tomou alguma pancada forte na cabeça pra autorizar uma monstruosidade como o kichute. Mais ódio ainda tinha dos coleguinhas, que se mantiveram em êxtase pelos poucos minutos que se estenderam até o soar do sino do recreio, enquanto ela permanecia quieta, pensando no que fazer. Quando todos se preparavam pra sair, a dondoca mirim achou que aquele seria o momento adequado para externar o que sentia, então correu à porta, antes de todos, bloqueando-lhes a saída e berrando a plenos pulmões:

- KICHUTE É UMA MERDA!!!

Seguiu-se um, talvez dois segundos de silêncio, ao fim do qual alguma criança gritou:

- Porrada!!!

E saiu a indiada toda, uma horda de 25 delinqüentes juvenis, atrás daquele par de sapatinhos de boneca que, verdade seja dita, não corriam tanto quanto a merda do kichute. Alcançada no pátio do recreio, a menina não se lembra exatamente como ou de quem apanhou, mas ao fim do linchamento, tinha um arranhão visível no antebraço direito, que mostrou pro irmão mais velho, então na terceira série, dizendo com o beiço deste tamanho apontado pro gordão que a agarrou primeiro pelos cabelos:

- Esse garoto me bateu.
- Foi? Pode deixar que eu vou falar com o irmão dele, que estuda na minha turma.
A menina seguiu seu irmão, na certeza de que ele defenderia sua honra.
- Ó, seu irmão bateu na minha irmã.
- E daí?, disse o ainda mais gordão irmão do gordãozinho, dando de ombros.

A coisa ficou por aquilo mesmo. A menina nunca mais conseguiu enxergar seu próprio irmão como um ser humano digno. Semanas mais tarde, recusou o par de kichutes que sua mãe lhe dera de aniversário e, dizem as más línguas, logo tratou de desenvolver uma asma gravíssima, que fez com que sua família se mudasse do sertão árido de Brasília pro clima praiano do Rio de Janeiro. Pra bem longe daquelas crianças e seus kichutes assassinos.