Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, outubro 13, 2010

O incrível mistério do cocô-do-mar

Eu sei que muita gente vai espumar de raiva e nojo quando eu disser isso, mas eu levo meu cachorro à praia todos os dias e sequer considero esta uma transgressão verdadeira. Eu cresci ouvindo dizer que não se pode levar cachorro à praia, até que um dia eu deixei meu Povo Brasileiro escorregar da calçada pra areia e percebi que um novo mundo de textura e alegria se abria para ele. O Povo ficou muito feliz e fez o que todo galgo iraquiano sabe fazer de melhor nessa vida, que é correr desesperadamente até que as orelhas se colem à cauda. 

Aí, quando veio a Bibi, eu já sabia que os cães gostam de areia de praia (como algumas raras pessoas já nascem sabendo que seus peludos amam meia com chulé, peixe podre, hidratante da Lancôme e outras coisas bizarras ao paladar humano). Minha primeira providência, quando Bibi finalmente pôde passear, foi levá-la a conhecer o mar. O primeiro encontro de cão com praia foi coroado pela educada abordagem de um guarda municipal, que me explicou, gentilmente, que eu não poderia deixar meu cão circular ali. "Nem de guia?", despistei. "Nem de guia", retrucou. Então, fingindo espanto, eu acorrentei minha recém-liberta cã e me afastei dali tentando dissimular a sub-gargalhada que retesava meus lábios e expandia minha alma: afinal, se o castigo de levar o cão à praia é simplesmente este (ter de dialogar educamente com um guarda municipal), eu jurei a mim mesma que, dali pra frente, levaria minha caçula canina todos os dias às saias do mar. E foi o que fiz. Pelo menos até esta noite.

Esta noite, quando corríamos pelas areias praia do Leblon, Bibi abocanhou uma pequena montanha de areia. "Normal", pensei. Desde que começamos a frequentar a praia, metade do que ela defeca é areia, metade é o que sobrou da ração (e, antes que alguém surte, devo esclarecer que cocô é uma coisa que eu e Bibi só fazemos em casa). Mais dois passos e vejo que ela farejou algo no chão e mudou abruptamente de direção. Cheguei a pensar, orgulhosa, que ela havia identificado um rato de praia ou algum outro molusco gosmento que tenha por hábito se esconder das criaturas superiores ao luar, mas não: novamente, ela abocanha um monte de areia. E mais outro, e mais outro, e mais outro. Agora, ao contrário das outras vezes, ela parece mastigar o que quer que seja aquilo que apreendeu com a boca. Tenho a brilhante ideia de escancarar-lhe a goela para ver o que ela está comendo e encontro, entre a língua e o palato duro de meu inocente Bichon da Patagônia, um legítimo exemplar de cocô-do-mar praticamente intacto.

Eu nunca tinha visto um cocô-do-mar antes, mas há coisas que a gente não precisa ver para reconhecer. O cocô-do-mar, como o próprio nome diz, é um molusco gosmento de cor pardacenta e odor cocozífero (carregado nas notas de enxofre), de formato cilíndrico e onipresente em toda a orla da cidade maravilhosa. Reparei que a Bibi, por ocasião da epidemia de cocô-do-mar, não conseguia cumprir sua singela rotina de me acompanhar na corrida porque ela tinha que comer, tal qual um pac man maldito, todos os cocôs-do-mar que encontrasse pelo caminho. E acreditem: eram muitos!

A pergunta que não quer calar é: seria o cocô-do-mar é um subproduto de cetáceos de grande porte que porventura estejam obrando por águas circunvizinhas? Ou seria o cocô-do-mar uma espécie de molusco pardacento ainda desconhecido dos taxonomistas oceânicos? A única coisa que sei é que o cocô-do-mar fede e seu fedor é real. Escovei os dentes da Bibi umas duzentas vezes, e ainda assim, quando ela arfa de boca aberta aos meus pés, continuo a sentir o bafo característico dos cocôs-do-mar que ela deveras comeu. Nada de praia pra Bibi nos próximos dias! Pelo menos até que as autoridades competentes atestem que a praia está limpa o bastante para que eu leve meu bebê-cão até ela. Eu quero que a FEEMA preste contas desse cocô-do-mar!

***

Hoje descobri que não consigo fazer mal a uma mosca. Quando fui aquecer meu almoço no microondas, vi que uma mosca havia entrado de gaiata no forno programado para aquecer o congelado à potência máxima por cinco minutos. Antes de fechar a porta do forno e apertar "INICIAR", vislumbrei dois cenários distintos:

1) eu fecho a mosca dentro do forno, aperto INICIAR, ouço um estalo (da mosca explodindo sobre meu estrogonofe de frango congelado), ingiro uma refeição infectada por uma praga rara transmitida por mosca cozidas em microondas e morro na primeira passagem da lua sem que ninguém saiba do que adoeci. Talvez o Nobel da Medicina de 2057 cite meu misterioso óbito em seu discurso de nomeação.

 2) espanto a mosca do forno antes de apertar INICIAR, faço uma média com Deus e ganho, talvez, uns 2 segundos a mais de vida. 

E mesmo que dois segundos não possam parecer muita coisa na sobrevida dum homem, eu acabei optando por enxotar a mosquinha do meu microondas. Se não pelos dois segundos a mais de sobrevida, pelo menos para evitar o estalido horripilante de um ser submetido à crueldade gratuita e desmedida do ser humano.

E também, é claro, porque eu não pude deixar de pensar que o forno de microondas está para o efeito estufa assim como a minha mosquinha está para as baleias martirizadas que espalham, num gesto desesperado, seus cocôs-do-mar pela praia, na esperança de que alguém entenda a sua dramática mensagem ecológica (ao invés de simplesmente comê-la, que é o que a gente tem feito até então).