Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sábado, dezembro 25, 2010

O sax mora ao lado

Certa vez publiquei um artigo no jornalzinho do meu condomínio para tentar sensibilizar os condôminos a serem mais tolerantes com os animais de seus vizinhos. Minha vontade era dizer que nós, que não temos filhos, já somos obrigados a suportar os seus [filhos], então nada mais justo que vocês, que não têm animais, suportem os nossos [peludos], mas eu tive que ensaiar uma saída mais diplomática para este já tão controverso tema da tolerância interespecífica condominial. Só me restou apelar pro drama dos velhinhos  solitários que têm nos animais o único elo com o mundo [lá] fora do apartamento. Mal sabia que, em pouco tempo, eu também me tornaria uma dessas pessoas solitárias que só saem de casa para trabalhar e passear com o cachorro e que, graças a isto, não perderam definitivamente a capacidade de articular frases tolas e saudações lacônicas (como 'dia, 'noite e 'brigada) na presença de outros humanos. 

A peludoterapia intensiva é um veneno e tanto contra a solidão e os terríveis sintomas da agorafobia subclínica.

Pois foi graças ao meu cão, que pacientemente leva-me todos os dias a passear, que eu conheci um desses velhinhos solitários legítimos, que tem em seu pinscher de quilo e meio um excelente facilitador de conversas sobre os tempos em que esculpia coisas belíssimas e teve uma linda pousada em Ouro Preto, toda decorada com amor e seu suor de escultor, profissão que lhe custou algumas artroses ("tá vendo?") e o orgulho de ter uma linda escultura na Lagoa Rodrigo de Freitas. Nos dias em que não o encontro, sonho com suas histórias.

Foi graças ao meu cão, que faz o que pode para me expor a uma réstia de luz celeste, que descobri que o saxofonista do F, que toca as mais belas canções que um saxofone consegue pronunciar, teve o coração partido e nunca mais se recuperou, e agora, só pra se vingar deste mundo cão, passa os dias a tocar dolorosamente músicas que fariam partir o coração de qualquer pedra, mesmo daquelas que não entendem nada de música, como eu.

Graças ao meu cão, que faz o maior sucesso com todas as crianças do condomínio (a ponto de uma delas ter me proposto uma troca chocante, o cão dela pelo meu, proposta da qual gentilmente declinei, pois é importante ser sempre gentil com os menores de seis anos porque eles realmente não sabem o que dizem ou fazem), que eu comecei a me relacionar melhor com os pequenos. Eu já cheguei a pensar que só seria capaz de tolerar crianças consanguíneas ou as de amigos que eu amo muito, mas meu cão me ensinou que todo filhote é digno de amor e respeito, e que todas as criaturas são, em última instância, filhotes de alguém - até mesmo os políticos, os traficantes, as pessoas que odeiam animais e outros tipos que, no período a.B. (antes da Bibi), eu aniquiliaria na ponta da unha se fosse um gigante de 100 metros de altura.

Graças à Bibi, se eu hoje tivesse que escrever um texto para sensibilizar as pessoas a tolerarem os animais de seus vizinhos, seria obrigada a escrever uma autobiografia para provar que os animais podem fazer com que nós enxerguemos melhor o próximo e escutemos - com ou ouvido interno do coração - o que os outros realmente têm a dizer com suas palavras, seus gestos e sua música.