No túnel do tempo
Estou aqui em Sampa, passando um final de semana ao lado de meu sobrinho de dois meses. Ele é, sem dúvida alguma, a coisa mais linda do mundo, com olhos de um azul bem escuro por fora e bem clarinho em torno da pupila. Contudo, 24 horas sob o mesmo teto que ele me fez reconsiderar seriamente aquele antigo desejo de ser mãe. Talvez seja melhor adotar uma criancinha gostosinha, já falando, ou então ficar só na posse responsável de bichos mesmo. Não é drama, não. Olha só a rotina de uma pobre mãe com um bebê recém nascido.
São 3 da manhã: o neném chora. Ela acorda cambaleante, vai até o berço, pega neném, fala com neném, senta no sofá e amamenta. O neném mama afoitamente nos primeiros 2 minutos, mas talvez por a casa estar mergulhada no silêncio e escuridão da madrugada, ele vai ficando com um soninho... os olhinhos vão fechando... e pronto: cochila no peito umas dez vezes até terminar a mamada, que - por isso - dura 45 intermináveis minutos. Aí a mãe, praticamente em coma de tanto sono, põe o menino pra arrotar, caminhando que nem um zumbi pela casa, pé ante pé pra não acordar ninguém.
Às 4 horas ela volta a se deitar, mas só consegue dormir às 5 porque fica vidrada na babá eletrônica, com medo de não ter colocado o neném pra arrotar direito, dele "golfar" e morrer sufocado. Às 6 horas, ela pula da cama sobressaltada com o choro do neném no ouvido dela (a babá eletrônica fica no criado mudo). Provavelmente deve ter sonhado com o bebê morrendo sufocado. Não tem tempo nem de escovar os dentes, senão o bebê acorda todo mundo na casa. Lá vai ela pro sofá, com bafo mesmo, trocando as pernas de sono: dá peito, espera arroto, faz caminhada, berço de novo. No berço, troca de fralda. O bebê está ligadão, parece que vai voar de tanto que bate as perninhas. Justo agora que ela precisa que ele fique paradinho pra limpar o cocô que está entranhado em todas as dobrinhas (e são muitas) e, não sei se vocês sabem disso, mas cocô de neném nessa idade é mole-tipo-sorvete-no-verão. Sempre. Mais uma pernada, e lá vai um splash de cocô no lençol, na borda do berço, na mamãe. É até bonito de ver, é ocre e plástico, porém muito nojento. Com muita paciência, a mãe limpa tudo, troca fralda e pede à tia (a esta altura estática e horrorizada de nojo) que segure o neném já limpinho enquanto ela troca o lençol e limpa o berço. Depois da faxina, o bebê é colocado no berço bem bonitinho e de ladinho, que é pra não sufocar na própria golfada. Infelizmente, ainda são 7 da manhã e o guri está à toda. Ele quer dançar, não importa o ritmo (ele só vai aprender algo sobre ritmo daqui a uns 10 anos). Então alguém tem que ligar o som, colocar a música e dançar com ele no colo: quando não tem tia em casa, é a mãe que faz tudo. Aí ela tem seus primeiros 15 minutos livres do dia, o suficiente pra escovar os dentes, tomar um banho de gato e voltar correndo pra sala porque, a esta altura, a criança já se cansou do CD e agora começa a estranhar aquela pessoa que jura ser sua tia. Resumindo: o neném chora. A mãe pega o neném, e agora a tia tem 15 minutos pra fazer café, escovar os dentes e pentear o cabelo pra parar de assustar criancinhas. A esta altura, ele se cansou da ginástica e da dança e começa a dar os primeiros sinais de desgaste físico. Vai pro berço de novo, coloca a fraldinha em cima do rosto do neném, dá uma chupeta pra ele (tem toda uma ciência pra escolher chupeta, é muito importante que seja em silicone e com formato anatômico), o bebê dorme. São 8 horas da manhã e eu estou exausta, parece que tomei uma surra. Vou tirar um cochilo e acordo com o choro do meu sobrinho: desta vez ele quer mamar meia hora mais cedo e o peito da mãe dele não está cheio o bastante. Eu fico com a árdua tarefa de embalar o guri, fazer xi, xi, xi, passou, passou, passou, falar um monte de abobrinha pra ver se ele se acalma, enquanto minha cunhada toma 3 litros d'água e uma caneca de canjica pro peito encher – a ciência não justifica nada disso, mas em situações de desespero todos ficamos menos céticos. Todas as táticas e rezas pró-leiteiras são executadas em 2 minutos, porque afinal o guri se esgoela e nunca se sabe se a Polícia vai bater na sua porta pra investigar uma denúncia anônima de infanticídio. Encheu o peito, ótimo. Começa tudo de novo.
Um pouco antes das 11 h, é hora do banho do bebê. Existe um preparo todo especial. Não pensem que é assim, moleza, dar banho num neném. A água tem que ter toda uma temperatura, o ambiente tem que ter toda uma iluminação, há toda uma magia. Apesar de haver um termômetro em forma de tartaruga dentro da banheira, é muito difícil fazer com que a água fique na temperatura ideal e, quando está fora, o neném chora. Aliás, o neném chora à vera! Caramba, tudo é motivo pra ele arreganhar a gengiva e mostrar aquela goela enorme. Uma goela e uma gengiva muito bonitinhas, por sinal. Quando a temperatura está ótima, obviamente o pequeno já está angustiado de fome. Então, ele chora. E quando ele chora, parece que o mundo vai acabar, não existe argumentação, bom-senso, diálogo, nada que o convença de que ele está over-reacting. E porque ele chora, ou porque ele é neném ainda, o banho é muito rápido, um banho tcheco (tcheco, tcheco, tcheco e acabou). O telefone toca, mas tem que deixar tocar porque, quando o neném está tomando banho, a porta fica hermeticamente fechada por causa do tal do golpe de ar: o pior vilão da pediatria. Seca neném, põe talco, hipoglós, fralda, faz teste pra ver se a fralda não está garroteando a perninha, põe roupa, escova o cabelo e, não sei se eu já comentei: o cara está aos berros!!! É um momento muito tenso. Eu saio do quarto do bebê na frente, fechando tudo quanto é janela, e minha cunhada vai atrás, em direção à sala pra amamentar, e repete-se um novo ciclo.
Na hora do almoço, eu faço tudo o que posso pra minha cunhada poder descansar um pouco: esquento a comida congelada no microondas e faço um arroz, mas estamos todas tão exaustas que ninguém vai reparar que eu esqueci o sal. Às 13h eu penso em mil desculpas irrefutáveis pra pegar o primeiro avião pra casa ou qualquer lugar bem longe dali, porém resisto bravamente porque ainda tenho esperança de cochilar depois do almoço. Minha mãe chega e me rende. Eu finalmente cochilo, mas sonho o tempo todo com o neném e não consigo descansar. Acho que estou muito impressionada. Acordo rouca. Ou melhor, muda. O meu celular toca e minha amiga não consegue ouvir minha voz. Ela desliga e liga de novo 3 vezes, até perceber que eu estou muda. Minha cunhada acha que pode ser gripe e dá a entender, sem grandes sutilezas, que é melhor eu me afastar do menino. Então eu tomo um banho, saio do chuveiro renovada e provo que estou ótima. Mas no duro estou um caco. Aí chega uma visita.
A visita é um capítulo à parte. Um saco, visita. Visita é um troço que não vai embora nunca, e o pior é que todo mundo faz uma cara de "que ótimo". A família fica sempre com medo de mau olhado e, apesar dos elogios, que o menino é lindo, que olhos bárbaros ele tem, etc, a gente fica sempre com um pouquinho de resistência e ódio da visita - não sei bem porquê. A sorte é que está na hora do guri mamar de novo, então a visita se toca e vai embora. O bebê fica bem feliz e é chegado o momento dele balbuciar algumas sílabas (uma delícia, voz de nenezinho). Minha mãe, a avó, jura que ele já fala "angu", o que não deixa de ser extremamente criativo da parte dela. Mais criativo ainda seria se ele dissesse "angu" e ela entendesse "vovó". Começa uma interminável (e abominável) sessão de fotografias repleta de flashes, e é visível a irritação da mãe e do bebê. Eu penso em lesão de nervo óptico, torço praquilo acabar logo, mas sigo o correto exemplo de minha adorável cunhada e fico quieta, esperando que o filme acabe.
O filme finalmente acaba e meu sobrinho não ficou cego. Ufa.
A esta altura eu perdi a noção da hora, mas já escureceu. Minha cunhada cochila pela primeira vez desde as 6 da manhã. O crepúsculo em São Paulo me traz um certo pessimismo e eu fico pensando como deve ser a vida de uma pessoa em turnos de duas horas. Em duas horas, você não tem tempo de ir para a academia fazer musculação e esteira: tem que ser um ou outro (senão não dá tempo nem de tomar banho). Em duas horas, você não consegue fazer supermercado. E quem cumpre uma jornada de trabalho em duas horas? Em duas horas, pra falar a verdade, não dá nem pra dormir de verdade. Deve ser um inferno viver em turnos de duas horas. Isto tudo porque não estou computando o tempo da shantala, o choro da cólica, da dor de ouvido, etc. Nem estou computando a deformação física da gravidez e da amamentação, que a pele estica de forma irreal, e há de se cumprir toda uma rotina espartana para que a pele retorne e, junto com ela, o peso e a auto-estima.
Isso tudo é muito grave. Eu não tinha idéia. Acho que ninguém tem idéia, senão reconsideraria. Por isso eu agora penso que bebê bom é o bebê dos outros, e eu estou muito feliz por ser tia, que não deixa de representar uma relação honesta de consangüinidade entre duas gerações consecutivas. Tinha que existir uma escola preparatória pra essa loucura de viver de 2 em 2 horas, que pra mim é a coisa mais grave e desumana da maternidade. Apesar da minha cunhada e toda família estarem muito felizes, eu estou muito (mal) impressionada. Nada pode ser mais exaustivo do que ser mãe.
Vocês podem estar se perguntando: "mas e o pai da criança, não faz nada?" Faz, sim, claro que faz (senão não seria mais meu irmão). Mas faz quando dá. Quando não está trabalhando de 6 às 22h, de segunda a sábado. E se vocês pensam que ele resolve o problema quando o neném fica roxo de tanto berrar, estão enganadíssimos: ele vai lá, interromper o cochilo da pobre mamãe, pra que ela faça alguma coisa pro bebê sossegar. Afinal, só quem carregou aquele pacotinho na barriga por 9 meses entende o que ele quer. E só quem passa por isso é capaz de produzir um suspiro longo e sentido de saudade “daqueles tempos” em que a mãe é mesmo o mundo inteiro pra criança.
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