Sisterhood
Eram duas: uma de seis, outra de oito anos. A mais nova achava tudo lindo, se ria de tudo, ao passo que a mais velha queria tomar tudo o que a outra gostava, como que tentando lhe drenar o sorriso na origem. Uma ou outra tia solteirona chamaria aquilo de inveja, mas dizer que o desejo de fazer a alegria da caçula sumir é ciúme ou inveja seria simplório demais até pra uma criança de 6 anos. Pois, no Natal, a mais velha teve uma idéia: iria trocar seu presente pelo da menor, e assim ela garantiria para si a felicidade da irmã. Naquela noite, sem desconfiar dos planos da filha, a mãe coloca os presentinhos aos pés das duas caminhas e não nota a troca até o dia seguinte, quando a menor acorda a casa toda dando gritinhos de felicidade ao ver os pacotes de Papai Noel. Abre seu presente - uma boneca de cabelos azuis - e pula na cama de alegria, porque azul era justamente a cor do quarto de sua irmã, e talvez com este passaporte ela pudesse ter finalmente ter acesso ao quarto proibido da mais velha. No quarto ao lado, no entanto, uma menina desembrulhava uma linda boneca de cabeleireira rosa, e tudo em que pensa é o quarto cor-de-rosa da caçula: sua mãe nunca mais a amaria quando descobrisse a troca de bonecas. Seria muito mais fácil se a fedelha não existisse.
***
Finalmente nascia o bebê que mamãe trazia em sua barriga por todos aqueles meses. Ela ainda não entendia bem o que era nascimento, nem como eles tirariam o bebê da barriga pelo umbigo. O umbigo lhe parecia estreito demais pra oferecer passagem a um neném, mas isso não era um grave problema, pois aos quatro anos o que dilata é a mente, e não o corpo físico. Só pôde ver a mãe quando as cores lhe haviam retornado ao rosto e a irmã estava milagrosamente vestida e limpa, como uma dessas bonecas que ela tinha às dezenas. Mamãe parecia ter acabado de acordar, estava um pouco estranha, o nariz algo largo, e do alto daquela cama altíssima de hospital ela abre um pouco um pacotinho que tem nos braços e mostra - primeiro um dedinho, depois uma mãozinha fechada e vermelha, em seguida um rosto minúsculo, mas ainda assim maior que o de suas bonecas - o bebê. Sua irmã. E diz: "Olha só a sua irmãzinha: não é linda?"
A menina passa horas fitando aquilo sem mexer um músculo sequer da face. Faz menção de tocar o bebê, a mãe recua e pede cuidado com cabeça, que o bebê é ainda muito molinho. Aquilo lhe dá ganas de esmagamento. O clima no quarto é tenso: todos os adultos querem saber o que a menina acha do bebê. Pressentindo a urgência, ela diz: "Ah, mãe. Ela é linda! Mas quando ela vair morrer?"
***
Uma era otimista, outra pessimista. Pra testá-las, o pai resolve dar-lhes um presente inusitado, fora de época. À pessimista, dá a bicicleta mais maneira do mercado, com tudo o que uma menina poderia desejar numa bicicleta: design das Garotas Superpoderosas, buzina com 1800 toques polifônicos, selim italiano e rodinhas laterais com ajuste eletrônico de altura. À otimista, dá um balde repleto de merda de cavalo. Observa a reação das pequenas:
(pessimista): "Pô, essa cor é escrota. Vou pagar o maior mico de pedalar uma bicicleta lilás, quando todas as minhas amigas pedalam bicicletas rosa. As músicas da buzina são cafonas, o banco é alto demais pra mim e pra quê rodinhas, se daqui a pouco eu já não vou precisar delas?"
(otimista): "Você ganhou uma bicicleta? Puxa, legal, mas ó, quero te enganar, não: acho que eu ganhei um cavalo, e dos grandes! Só não descobri onde ele está dormindo."
PS: este último texto, uma versão mulambenta duma piada do Juca Chaves que eu ouvia na infância.
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