Píula
Minha véia vó não era pessoa de dizer palavrão. Nascida no interior do estado do RJ e alfabetizada na fazenda de seu pai por uma tutora que dava aulas de montaria, etiqueta francesa, francês e economia doméstica (ha ha ha), vovó cresceu com um vocabulário simplório que incluía um único palavrão cabeludo: píula. Quando ela estava muito nervosa, confesso, o palavrão saía composto: êta, píula! Um dia, eu devia ter uns 7 anos, perguntei: "Vó, o que diabos quer dizer píula?" E ela arregalou os olhos, olhou em volta, verificou se havia testemunhas num raio de 20 km, me levou prum cantinho reservado e disse:
Píula é o pior palavrão que existe. É uma mistura de merda, caralho, puta que pariu e vai tomar no cu.
Eu fiquei horrorizada, mas nunca revelei nada a ninguém. Guardei esse segredo até hoje, mas confesso que passei minha vida inteira gargalhando por dentro toda vez que ouvia minha avó dizer "êta, píula!". Aí eu me plantava na frente dela, botava meus braços em volta de seu pescoço (que foi ficando cada vez mais miúdo, à medida que eu crescia e ela encolhia), olhava nos olhos daquela véia doida e perguntava: "O que foi que a senhora acabou de dizer aí?" E gargalhávamos, as duas. Ninguém entendia. Aquele era o nosso código. Só eu sabia que píula era um bicho cabeludo. Eu e ela. E às vezes, na Caixa Econômica, pro gerente do banco, eu desconfio que ela falava píula, mil vezes píula! apenas pra me distrair. Ou pra deixar o gerente intrigado com minhas gargalhadas numa hora daquelas.
Só sei que eu, como menina-moça, educada em colégio de freiras e criada para casar e ter filhos, adorava ter uma vó que falasse tantas obscenidades secretas. Pensando bem, foi minha salvação enquanto criatura afetiva e sexualmente viável. Hoje eu poderia ser uma mulher frígida e domesticamente prendada, casada com um homem de terno e gravata num sala e dois quartos com vista pro Borel; mas, porque tive a avó que tive (e que me ensinou o mais cabeludo do palavrões horripilantes), eu cresci cheia de moral pra escolher minha própria turma esquisitona. E conhecer, com eles, outros palavrões, autores e substâncias horripilantes, que me deram uma vaga noção do que sou hoje.
Um dia, quando eu já tinha essa vaga noção de quem eu era e minha vó já tinha mais de 90 anos, eu falei pra ela: Vó, píula já era. O lance agora é dizer que não sei o quê de cu é rola. E dei uns exemplos: voto obrigatório é uma merda?; então voto obrigatório de cu é rola; Rosinha quer dar sopão a um real? Então assistencialismo de cu é rola. E por aí fui. Ela ficou muito confusa. Acho que já não associava bem os nomes (rola, cu) às pessoas, e ficou algum tempo com cara de interrogação me perguntando: como assim, o assistencialismo de cu ser rola? E eu expliquei que o barato era puramente o surrealismo do xingamento. Que nem tudo de cu é rola. Algumas coisas de cu, de fato, são rola, mas nem tudo. E tivemos uma longa conversa de vó e neta sobre isso. E ela ficou horrorizada de ouvir de sua inocente netinha tantas barbaridades e analogias cu-rola.
Na verdade, como era de se esperar, ela nunca aprendeu a usar meu xingamento mór. Ficou com o píula mesmo, eternamente. Às vezes, no afã de me agradar, mandava um: êta, rola! E danava a rir dela mesma. Só eu e ela ríamos, só eu e ela entendíamos a piada.
Hoje eu contei quantos palavrões eu falei ao longo do dia, e tive vontade de lavar minha boca com sabão de pimenta. Há três anos perdi minha vó e, com ela, perdi coisas inestimáveis, como meu mais alto padrão de gentileza, delicadeza e cortesia. Hoje eu sobrevivi a mais um dia ruim em trabalhos onde as pessoas se agridem gratuitamente, são incapazes de dizer por favor e obrigado, e senti muita falta de minha avó. Ela sabia, com seu incrível pensamento mágico, transformar agressão em carinho; irritação em sorriso; e acusação em perdão em dois tempos. Pessoas assim, cujas fôrmas foram quebradas há décadas, fazem falta em qualquer contexto.
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