A little mite from my friends
Quando eu era criança, tive sarna umas dozes vezes. Meu beagle, o Polaco, era rueiro, sarnento e assintomático. O cara dormia na cama comigo, claro, e quem se fodia era eu, claro. Às vezes, minha sarna era tanta, que o cachorro se coçava só de me ver. O sabonete padrão lá de casa era o Acarsan, um remédio quase homeopático pra sarna hoje em dia, mas que até hoje fede pra caramba. Acho que nunca fui uma criança cheiruda por causa do Acarsan, que fedia mais que Rexona ou desodorante da Avon. Se não me falha a memória, ele tinha até um cheirume de enxofre. Meu cachorro tinha um certo preconceito do meu cheiro de Acarsan, mas como ele era o algoz da sarna, relevava e se resignava a dormir comigo, desde que pudesse usar mais da metade do meu travesseiro. Foram os dias sarnentos mais felizes de minha vida.
Depois do Polaco, passei um tempão sem ter sarna. Depois de tanta sarna, toda picada de mosquito que coçasse parecia ser um presságio da parasitose pra mim. Criei paranóia. Já era grande demais pra feder a Acarsan.
Entrei pra faculdade e comecei a namorar geral. Um belo dia, ouvi meu namorado-Beto -- um estudante de veterinária já metido a mochar boi de fazenda -- dizer: "Melhor não me abraçar, não, que eu acho que tou com sarna." Pra quem não entende nada de sarna porque não teve contato com a natureza, eu explico: essa é uma doença que se pega no mato (ou de bichos que vivem no mato). Foi o Beto me dizer isso, que eu ri de me acabar. Disse, gargalhando: "Já tive tanta sarna, meu filho, que fiquei imune. Não pego mais."
No dia seguinte, no entanto, lá estava eu esperando a única farmácia de Seropédica abrir pra comprar a merda do Acarsan. Me fodi de verde amarelo. A sarna transmitida por pessoas parece ser mil vezes mais virulenta que a sarna transmitida por cães. Ou talvez o Acarsan tivesse ficado menos eficaz depois de tanto tempo.
Depois do Beto-veterinário, eu passei muitos, mas muitos anos mesmo, sem ter sarna. Se tinha um cachorro sarnento na clínica que ninguém queria pegar, eu pegava. Tenho pra mim, até hoje, que sarna é doença que só dá em quem tem medo de ter. Infelizmente, esta foi outra convicção que caiu por terra quando namorei um inglês, do tipo alto e de olho azul que a gente nunca imagina que terá sarna. Ele morava em um apartamento alugado por temporada que tinha sarna no colchão. Aí, pegamos sarna: ele e eu. Fiquei tão puta, mas tão puta! -- tudo bem pegar sarna dum cachorro ou até dum estudante de veterinária que mocha boi no mato, mas dum inglês, caralho!!! --, que marquei uma emergência na dermatologista. Ela me pôs num encaixe que durou 6 horas, mas eu esperei porque estava muito puta, doida pra saber das últimas novidades venenosas contra sarnas e ingleses. Ela prescreveu uma loção e eu comprei logo dois frascos, um pra mim e um pra ele. Expliquei que era pra ele passar em todo o corpo, que não podia deixar um milímetro de fora, e que a gente ia incinerar aquela merda de colchão e todas as roupas de cama. Mandei ele deixar toda a roupa de molho em água sanitária mega-ultra-super concentrada e, dois dias depois, só tinham sobrevivido duas peças de roupa do coitado. Ele achava tudo ótimo, pois culpa era seu nome, e confesso que eu não deixei barato. Fiz cobranças coloniais até injustas, do tipo: "quem é o porco subdesenvolvido aqui, heim?".
Dois dias depois da campanha do Povo Contra a Sarna-Frankstein, ele me liga. A voz acusava que estava nos últimos estertores: "Something is very wrong, dear." Fui ver o que era. Cheguei lá, ele me recebeu de sarongue. Melhor dizendo: de canga. O cara estava nu, enrolado na minha canga rosa da cintura pra baixo. E de óculos. Sentei no chão do corredor e me mijei de rir. Ele me pôs pra dentro, pois era do tipo discreto. Expliquei a gargalhada: "Claro que tem alguma coisa errada: não é assim que homem vai à praia no Brasil, dear." E ele: "Você não está entendendo, dear. Eu não consigo vestir uma cueca desde que passei aquela loção no corpo todo. Esse medicamento assou minhas partes íntimas."
Eu adoro esse jeito polido-contido dos ingleses. Um brasileiro teria dito coisa muito pior.
Pedi pra ver o dodói com olhar clínico e fiquei tão chocada que mordi a língua e tapei a boca pra não gritar de horror, sob a canga: o cara estava com a virilha e adjacências em carne viva, um troço nojento à vera. O novo remédio pra sarna era realmente sinistro: aparentemente, matava carrapatinhos e outros bichos ainda mais pluricelulares. Marquei outra emergência com minha dermato e salvei a vida do inglês. Custou, mas salvei. O namoro durou muito pouco depois disso, pois restaram várias lembranças ruins que a gente, sobretudo ele, não superou.
Há exatos nove anos que eu não tenho sarna. Tenho me enroscado nos bichos mais sarnentos que encontro pela frente, sempre na esperança de desenvolver imunidade a uma nova cepa de sarna, e acho que tem dado certo. Por sorte, também nunca mais me deitei com ninguém -- nem homem, nem cão -- com sarna. Mas apesar das evidências, fico pensando cá com os meus botões: como é bom ter um pouco de sarna pra se coçar! A vida rigorasamente asséptica é uma chatice.
Depois do Polaco, passei um tempão sem ter sarna. Depois de tanta sarna, toda picada de mosquito que coçasse parecia ser um presságio da parasitose pra mim. Criei paranóia. Já era grande demais pra feder a Acarsan.
Entrei pra faculdade e comecei a namorar geral. Um belo dia, ouvi meu namorado-Beto -- um estudante de veterinária já metido a mochar boi de fazenda -- dizer: "Melhor não me abraçar, não, que eu acho que tou com sarna." Pra quem não entende nada de sarna porque não teve contato com a natureza, eu explico: essa é uma doença que se pega no mato (ou de bichos que vivem no mato). Foi o Beto me dizer isso, que eu ri de me acabar. Disse, gargalhando: "Já tive tanta sarna, meu filho, que fiquei imune. Não pego mais."
No dia seguinte, no entanto, lá estava eu esperando a única farmácia de Seropédica abrir pra comprar a merda do Acarsan. Me fodi de verde amarelo. A sarna transmitida por pessoas parece ser mil vezes mais virulenta que a sarna transmitida por cães. Ou talvez o Acarsan tivesse ficado menos eficaz depois de tanto tempo.
Depois do Beto-veterinário, eu passei muitos, mas muitos anos mesmo, sem ter sarna. Se tinha um cachorro sarnento na clínica que ninguém queria pegar, eu pegava. Tenho pra mim, até hoje, que sarna é doença que só dá em quem tem medo de ter. Infelizmente, esta foi outra convicção que caiu por terra quando namorei um inglês, do tipo alto e de olho azul que a gente nunca imagina que terá sarna. Ele morava em um apartamento alugado por temporada que tinha sarna no colchão. Aí, pegamos sarna: ele e eu. Fiquei tão puta, mas tão puta! -- tudo bem pegar sarna dum cachorro ou até dum estudante de veterinária que mocha boi no mato, mas dum inglês, caralho!!! --, que marquei uma emergência na dermatologista. Ela me pôs num encaixe que durou 6 horas, mas eu esperei porque estava muito puta, doida pra saber das últimas novidades venenosas contra sarnas e ingleses. Ela prescreveu uma loção e eu comprei logo dois frascos, um pra mim e um pra ele. Expliquei que era pra ele passar em todo o corpo, que não podia deixar um milímetro de fora, e que a gente ia incinerar aquela merda de colchão e todas as roupas de cama. Mandei ele deixar toda a roupa de molho em água sanitária mega-ultra-super concentrada e, dois dias depois, só tinham sobrevivido duas peças de roupa do coitado. Ele achava tudo ótimo, pois culpa era seu nome, e confesso que eu não deixei barato. Fiz cobranças coloniais até injustas, do tipo: "quem é o porco subdesenvolvido aqui, heim?".
Dois dias depois da campanha do Povo Contra a Sarna-Frankstein, ele me liga. A voz acusava que estava nos últimos estertores: "Something is very wrong, dear." Fui ver o que era. Cheguei lá, ele me recebeu de sarongue. Melhor dizendo: de canga. O cara estava nu, enrolado na minha canga rosa da cintura pra baixo. E de óculos. Sentei no chão do corredor e me mijei de rir. Ele me pôs pra dentro, pois era do tipo discreto. Expliquei a gargalhada: "Claro que tem alguma coisa errada: não é assim que homem vai à praia no Brasil, dear." E ele: "Você não está entendendo, dear. Eu não consigo vestir uma cueca desde que passei aquela loção no corpo todo. Esse medicamento assou minhas partes íntimas."
Eu adoro esse jeito polido-contido dos ingleses. Um brasileiro teria dito coisa muito pior.
Pedi pra ver o dodói com olhar clínico e fiquei tão chocada que mordi a língua e tapei a boca pra não gritar de horror, sob a canga: o cara estava com a virilha e adjacências em carne viva, um troço nojento à vera. O novo remédio pra sarna era realmente sinistro: aparentemente, matava carrapatinhos e outros bichos ainda mais pluricelulares. Marquei outra emergência com minha dermato e salvei a vida do inglês. Custou, mas salvei. O namoro durou muito pouco depois disso, pois restaram várias lembranças ruins que a gente, sobretudo ele, não superou.
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Há exatos nove anos que eu não tenho sarna. Tenho me enroscado nos bichos mais sarnentos que encontro pela frente, sempre na esperança de desenvolver imunidade a uma nova cepa de sarna, e acho que tem dado certo. Por sorte, também nunca mais me deitei com ninguém -- nem homem, nem cão -- com sarna. Mas apesar das evidências, fico pensando cá com os meus botões: como é bom ter um pouco de sarna pra se coçar! A vida rigorasamente asséptica é uma chatice.
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