Ozzy Maria
Eu não sei explicar porque os animais me emocionam tanto. Talvez sejam os olhos, que falam mais que mil palavras; talvez seja pela confiança que eles depositam na gente, tanto pro bem quanto pro mal -- os animais, infelizmente, estão à nossa mercê, e muita gente abusa desse poder pra praticar todo tipo de crueldade. Eu não tenho mais verbo pra falar de crueldade, e nem é disso que quero falar, e sim da Ozzy Maria, a cadela que mudou minha vida pra sempre e me ensinou que amar bicho é uma coisa, e ser veterinário é outra bem diferente.
Ozzy era a pitbull do filho da ex-esposa de um ex-cliente que tinha recém se separado. Na separação de bens afetivos e materiais, ele ganhou a cadela. Há divórcios que vêm para o bem, e esse gerou um lucro e tanto: a Ozzy era o touro Ferdinando sob a pele de um cão: contemplava flores, tinha amigos peludos que caberiam em sua boca, mas ficava com o peite cheio de leite só de encontrá-los na praça da esquina. Seu olhar era doce e lânguido, e como quase todo pitbull, era um animal extremamente robusto e saudável até apresentar insuficiência renal aguda de causa desconhecida, apesar dos parcos 4 anos de idade. Uma dessas pernadas que o destino prega na gente. Eu, que era veterinária de pele e vacina da Ozzy, passei a importunar meus colegas nefrologistas veterinários que tinham acabado de abrir uma clínica de hemodiálise em Botafogo. Ligava tanto pra eles que, até hoje, apesar de a Karine (esposa do Márcio, nefrologista da Ozzy) ser cardiologista do meu Povo Brasileiro, quando eu ligo pra marcar consulta pro meu galgo, ela só associa o nome à pessoa quando eu digo que sou a Vanessa da Ozzy. E lá se vão cinco anos dessa história triste!
Uma vez constatado que a cadela piorava no desalento de uma clínica 24h, onde ela fazia terapia intensiva, mudei toda a minha rotina pra poder ir à sua casa 3 vezes por dia pra lhe fazer fluidoterapia endovenosa e outras coisas que um proprietário desmaia só de pensar. Eu era incansável, vivia às turras com meu namorado, que não aceitava que eu saísse da cama às duas da manhã pra atender um cachorro, e acreditava que conseguiria mantê-la viva até que algum cirurgião veterinário realmente raçudo se dispusesse a tentar fazer nela um transplante renal.
A verdade, infelizmente, é que ninguém dominava a técnica, nem havia o banco de órgãos de caninos no Brasil. Se pra seres humanos já é flórida conseguir um rim, imagina pra um cachorro! Mas eu estava cega, e toda vez que a Ozzy me lambia, eu me agarrava com unhas e dentes à esperança de que um milagre aconteceria e que, se de repente eu doasse um dos meus rins pra ela, e se seus anticorpos caninos se distraíssem e achassem tudo bacana, então viveríamos todos felizes para sempre.
Houve um momento, confesso, em que esqueci que por trás da Ozzy havia um dono, e que ele era uma pessoa com limitações físicas, emocionais e financeiras como todo mundo. Também confesso que, desde a segunda semana de tratamento, parei de cobrar pelas visitas. Disse que acertaria tudo no final, e o final infelizmente veio cedo demais. O dono estava exausto, tinha semanas que não dormia com medo d'o soro parar de pingar, e a própria Ozzy havia extrapolado sua capacidade física de fazer hemodiálises. O nefro e a cardio sofriam comigo e pela cadela, e quando tocamos pela primeira vez na palavra eutanásia foi um chororô geral. A Ozzy foi o cachorro mais apaixonante que eu conheci, mesmo em seus últimos estertores.
Em sua última noite, quando o dono já estava resignado com a idéia da eutanásia, pedi pra ele deixar a Ozzy dormir em minha casa. Eu sei que não se deve dormir com um paciente, mas eu precisava ter um particular com ela. A boa morte estava agendada para a manhã seguinte, e seria feita não por mim, que me sentia inábil e dolorosamente impotente diante dessa perda, mas por um querido amigo anestesista, o Rodrigo Mannarino. Antes de lhe dar o remedinho pro controle da dor e da angústia dos últimos instantes, enrolei-a em seus cobertores, ajeitei-a confortavelmente em seu puff de couro (tudo veio da casa dela), e pedi-lhe mil desculpas pelas limitações da veterinária, essa ciência ainda tão medieval em algumas áreas, e prometi que tudo iria acabar logo, e em breve ela poderia voltar a brincar com peludinhos que caberiam em sua bocarra nos jardins com as gramas mais tenras e os cheiros mais instigantes pra cachorros. Dormi -- ou pelo menos tentei -- em um colchonete no chão, ao seu lado, e ali fiquei até o Rodrigo fazer tudo que precisava ser feito em um respeitoso silêncio, só quebrado vez por outra por uns soluços que eu deixava escapar. Fim.
Semanas depois, o dono da Ozzy me procurou pra saber quanto ele me devia pelas últimas 4 semanas de terapia intensiva em domicílio. Falei, sinceramente, que não saberia cobrar por isso. Ele me pagou, claro, mas um valor saiu da cabeça dele e que eu, em absoluto, não contestei. Eu jamais saberia cobrar porque aquelas quatro semanas me valeram cinco anos de estudo universitário, sete de estágios, clínica e pós-graduação, sem contar com os quase 15 anos de análise e a doença da qual eu nunca vou me curar: a impotência (ou seria onipotência?) e a culpa. Enfim, aquelas 4 semanas me custaram o fim de uma ilusão: gostar de bicho não significa poder tratar de bicho; a gente perde o senso crítico quando se envolve a esse ponto, e existe um limite muito tênue entre o interesse sincero e o desprezo pelo outro. Eu sempre peco pelo excesso de afeto -- cheguei a achar que minha saúde era perfeita por isso, mas é justamente o contrário -- e esse tipo de entrega, pra qualquer terapeuta e respectivos pacientes, não é bom.
Depois da Ozzy, liguei pra todos os meus clientes (os humanos, digo) para dizer que tinha parado de clinicar, e eu só voltei a exercer a veterinária quando entrei pra prefeitura, em 2004. Essa cadelinha me me chamou a atenção pro fato de que eu nunca considerei cliente o portador do cheque ou da conta bancária, mas sim aquele que late, lambe e às vezes até tenta morder, mas não o faz por mal. Nenhum veterinário consegue sobreviver sem ter a real noção de quem paga as contas. O emprego público, apesar de todos seus filtros e limitações, me permitiu exercer novamente um ofício sério pro qual, por tão incondicionalmente amoroso, é tão difícil de fixar um valor.
Se tivessem como movimentar dinheiro, os bichos jamais iriam a um veterinário. Muito sensato da parte deles, aliás. No lugar deles, eu usaria meus vinténs pra manter uma boa vida de cão, com direito a um escravinho humano desses bem abnegados, do tipo de mão flácida, que vive deixando cair comida da mesa, e só viaja se o hotel tiver suíte presidencial para peludos. Com ar condicionado, por favor!
Ozzy era a pitbull do filho da ex-esposa de um ex-cliente que tinha recém se separado. Na separação de bens afetivos e materiais, ele ganhou a cadela. Há divórcios que vêm para o bem, e esse gerou um lucro e tanto: a Ozzy era o touro Ferdinando sob a pele de um cão: contemplava flores, tinha amigos peludos que caberiam em sua boca, mas ficava com o peite cheio de leite só de encontrá-los na praça da esquina. Seu olhar era doce e lânguido, e como quase todo pitbull, era um animal extremamente robusto e saudável até apresentar insuficiência renal aguda de causa desconhecida, apesar dos parcos 4 anos de idade. Uma dessas pernadas que o destino prega na gente. Eu, que era veterinária de pele e vacina da Ozzy, passei a importunar meus colegas nefrologistas veterinários que tinham acabado de abrir uma clínica de hemodiálise em Botafogo. Ligava tanto pra eles que, até hoje, apesar de a Karine (esposa do Márcio, nefrologista da Ozzy) ser cardiologista do meu Povo Brasileiro, quando eu ligo pra marcar consulta pro meu galgo, ela só associa o nome à pessoa quando eu digo que sou a Vanessa da Ozzy. E lá se vão cinco anos dessa história triste!
Uma vez constatado que a cadela piorava no desalento de uma clínica 24h, onde ela fazia terapia intensiva, mudei toda a minha rotina pra poder ir à sua casa 3 vezes por dia pra lhe fazer fluidoterapia endovenosa e outras coisas que um proprietário desmaia só de pensar. Eu era incansável, vivia às turras com meu namorado, que não aceitava que eu saísse da cama às duas da manhã pra atender um cachorro, e acreditava que conseguiria mantê-la viva até que algum cirurgião veterinário realmente raçudo se dispusesse a tentar fazer nela um transplante renal.
A verdade, infelizmente, é que ninguém dominava a técnica, nem havia o banco de órgãos de caninos no Brasil. Se pra seres humanos já é flórida conseguir um rim, imagina pra um cachorro! Mas eu estava cega, e toda vez que a Ozzy me lambia, eu me agarrava com unhas e dentes à esperança de que um milagre aconteceria e que, se de repente eu doasse um dos meus rins pra ela, e se seus anticorpos caninos se distraíssem e achassem tudo bacana, então viveríamos todos felizes para sempre.
Houve um momento, confesso, em que esqueci que por trás da Ozzy havia um dono, e que ele era uma pessoa com limitações físicas, emocionais e financeiras como todo mundo. Também confesso que, desde a segunda semana de tratamento, parei de cobrar pelas visitas. Disse que acertaria tudo no final, e o final infelizmente veio cedo demais. O dono estava exausto, tinha semanas que não dormia com medo d'o soro parar de pingar, e a própria Ozzy havia extrapolado sua capacidade física de fazer hemodiálises. O nefro e a cardio sofriam comigo e pela cadela, e quando tocamos pela primeira vez na palavra eutanásia foi um chororô geral. A Ozzy foi o cachorro mais apaixonante que eu conheci, mesmo em seus últimos estertores.
Em sua última noite, quando o dono já estava resignado com a idéia da eutanásia, pedi pra ele deixar a Ozzy dormir em minha casa. Eu sei que não se deve dormir com um paciente, mas eu precisava ter um particular com ela. A boa morte estava agendada para a manhã seguinte, e seria feita não por mim, que me sentia inábil e dolorosamente impotente diante dessa perda, mas por um querido amigo anestesista, o Rodrigo Mannarino. Antes de lhe dar o remedinho pro controle da dor e da angústia dos últimos instantes, enrolei-a em seus cobertores, ajeitei-a confortavelmente em seu puff de couro (tudo veio da casa dela), e pedi-lhe mil desculpas pelas limitações da veterinária, essa ciência ainda tão medieval em algumas áreas, e prometi que tudo iria acabar logo, e em breve ela poderia voltar a brincar com peludinhos que caberiam em sua bocarra nos jardins com as gramas mais tenras e os cheiros mais instigantes pra cachorros. Dormi -- ou pelo menos tentei -- em um colchonete no chão, ao seu lado, e ali fiquei até o Rodrigo fazer tudo que precisava ser feito em um respeitoso silêncio, só quebrado vez por outra por uns soluços que eu deixava escapar. Fim.
Semanas depois, o dono da Ozzy me procurou pra saber quanto ele me devia pelas últimas 4 semanas de terapia intensiva em domicílio. Falei, sinceramente, que não saberia cobrar por isso. Ele me pagou, claro, mas um valor saiu da cabeça dele e que eu, em absoluto, não contestei. Eu jamais saberia cobrar porque aquelas quatro semanas me valeram cinco anos de estudo universitário, sete de estágios, clínica e pós-graduação, sem contar com os quase 15 anos de análise e a doença da qual eu nunca vou me curar: a impotência (ou seria onipotência?) e a culpa. Enfim, aquelas 4 semanas me custaram o fim de uma ilusão: gostar de bicho não significa poder tratar de bicho; a gente perde o senso crítico quando se envolve a esse ponto, e existe um limite muito tênue entre o interesse sincero e o desprezo pelo outro. Eu sempre peco pelo excesso de afeto -- cheguei a achar que minha saúde era perfeita por isso, mas é justamente o contrário -- e esse tipo de entrega, pra qualquer terapeuta e respectivos pacientes, não é bom.
Depois da Ozzy, liguei pra todos os meus clientes (os humanos, digo) para dizer que tinha parado de clinicar, e eu só voltei a exercer a veterinária quando entrei pra prefeitura, em 2004. Essa cadelinha me me chamou a atenção pro fato de que eu nunca considerei cliente o portador do cheque ou da conta bancária, mas sim aquele que late, lambe e às vezes até tenta morder, mas não o faz por mal. Nenhum veterinário consegue sobreviver sem ter a real noção de quem paga as contas. O emprego público, apesar de todos seus filtros e limitações, me permitiu exercer novamente um ofício sério pro qual, por tão incondicionalmente amoroso, é tão difícil de fixar um valor.
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Se tivessem como movimentar dinheiro, os bichos jamais iriam a um veterinário. Muito sensato da parte deles, aliás. No lugar deles, eu usaria meus vinténs pra manter uma boa vida de cão, com direito a um escravinho humano desses bem abnegados, do tipo de mão flácida, que vive deixando cair comida da mesa, e só viaja se o hotel tiver suíte presidencial para peludos. Com ar condicionado, por favor!
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