Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, março 25, 2008

O céu dos peixinhos (para meu sobrinho Pedro Augusto)



Aquele tinha sido um dia muito difícil pro menino: quando acordou, seus avós não estavam mais em sua casa (tinham saído na calada da noite para pegar um vôo promocional da Gol), ele teve de ir pra escola depois de um longo feriado e, ao chegar em casa, flagrou seu peixinho Rex flutuando de barriga pra cima e com os olhos bem abertos no aquário. Com um puçá, cutucou o cara pra ver se o desvirava, pôs comida para ver se ele comia, ligou e desligou a luz pra ver se ele piscava, mas foi sua mãe quem lhe tocou a real mais dura do dia, talvez dos últimos seis anos: Rex estava morto. Dino estava vivo, mas Rex estava morto. "Por quê?", ele murmurou em tom de queixume choroso. E aí eu não sei o que a mãe dele disse (porque nem sempre a gente consegue ouvir do Rio aquilo que se fala em Salvador), mas provavelmente ela falou a coisa certa: que os peixes duram bem menos que a gente, e que um belo dia a bateria deles pifa e infelizmente a gente não tem como trocar.

O menino chorou boa parte do dia, e do lado de cá, a djindinha dele chorava também, pensando em como é cruel essa função (de ensinar sobre a tragédia inevitável de todas as coisas vivas) que os peixinhos de aquário têm na vida de uma criança. Ela, a djindinha, também um dia viu peixes -- eram três ou quatro -- flutuando em seu aquário. Tinha ela uns cinco anos e era uma contumaz devoradora de leite condensado, o único alimento que se dignava a comer porque era razoavelmente gostoso e ela não tinha apetite pra coisa outra alguma; e porque egoísta não era, um dia ofereceu seu doce aos peixinhos dourados, que afinal lhe encaravam fixamente (sem piscar!), com a boquinha abrindo e fechando, como se estivessem implorando: por favor, menina, me deixa provar! E ela deixou, mas aparentemente o leite condensado lhes infligiu severa dor de barriga, porque ficaram todos com a barriga inchada e virada pra cima em poucos minutos. Quando sua mãe chegou do trabalho e viu aquele cenário de peixicídio, não havia mais nada a fazer além de oferecer aos peixinhos mortos um enterro digno em meio aquático. A menina nunca mais deixou de associar a morte ao conceito de esgoto, tornou-se hipocondríaca e criou fobia de peixe, porque os peixes, afinal, morrem, e morrem bem debaixo do nosso nariz sujo de leite condensado.

***

Minha experiência traumática com o óbito de peixes não me torna, é claro, uma especialista em luto infantil precoce, mas se serve de algum consolo pro meu sobrinho, O Cara, eu tive 30 anos para imaginar bem como funciona o céu dos peixinhos de aquário: o cenário é de desenho animado, tipo Nemo, e a temperatura da água é ótima para afastar tubarões e outros peixes grandes devoradores de peixes menores. De quando em quando, os peixinhos dourados podem sair da água e caminhar pela areia de praias repletas de estrelas do mar vermelhas, onde não há gente para lhes capturar, mas há potes e mais potes daquele farelo próprio para peixes, ao contrário do leite condensado, com a vantagem de que lá, no céu dos peixinhos, eles podem comer à vontade, sem medo de morrer. Também há milhares de castelos com labirintos maravilhosos, onde os peixinhos se escondem e passam horas a brincar.

Eu, que sempre achei que isso era fruto de minha imaginação, juro que vi o céu dos peixinhos numa piscina de recifes ao norte de Natal. Tenho a forte impressão de ter reconhecido dois dos meus amigos por lá, mas eles estavam com muita pressa para brincar de pique-esconde, e aí eu não pude ter aquela certeza concreta, que a gente toca com as mãos, mas as melhores certezas do mundo são aquelas que a gente só sente dentro do coração.

Com amor,

Sua Djindinha