Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quinta-feira, maio 01, 2008

Contos Claustrofóbicos para a Hanna, parte II

Telefone

Tinha de estar na porta do Canecão em vinte minutos, mas o Caco ainda não tinha ligado e ela precisava tomar banho. O telefone sem fio não estava funcionando, e aquele pão-duro do Caco, porque usava orelhão, nunca ligava pro seu celular, então resolveu tomar banho de porta aberta, já que tinha certeza que ele ligaria na hora exata do xampu, como sempre.

Pois era a hora exata do xampu, e o telefone tocou. Caraca, ela bem que sabia! Fechou o chuveiro, encharcou o corredor até a sala e não era o Caco, era a Marcinha querendo saber do Caco. Pediu pra amiga ficar tentando falar com ele, que faltavam só 17 min pro show e ela ainda estava tomando banho, e tudo ficou ainda mais angustiante quando a Marcinha disse que já estava na porta com o Paulo, a Tati, o Pedro, o Marlan, o Guto e aquela namorada escrota dele, a Blergueth, hahaha, e que eles iam comprar ingresso na mão de cambista mesmo, porque o Canecão estava lo-ta-do, aquilo ali estava uma lou-cu-ra, você não tem no-ção, e a mulher não pa-ra-va de falar, e agora faltavam só 15 minutos, caraca!, o Caco provavelmente estava ligando pra ela naquele exato momento, beijo, beijo, tchau, deixa o celular no vibra, te ligo já, ok! Ufa. Abre chuveiro, enxagüa xampu, telefone toca, chuveiro fecha, ela nada crawl na poça entre o banheiro e o telefone, atende e ainda tem tempo de ouvir o Caco dizendo: Ih, acho que ela já saiu... Não, não, Caco! Caco, eu não saí nada, alô-alô, m'escuta!, eu tô aqui, me ouve! E o telefone: pu, pu, pu, pu, pu...

Se aqui no Brasil tivesse aquele serviço de ligar pro último número que te discou, ótimo, mas ela nada tinha a fazer além de ficar ali pasma, olhando pro telefone, sua derradeira esperança de conseguir ingressos pra única apresentação do Gotan Project na cidade. Agora tinha só 10 minutos pra terminar o banho e estar linda e loura na frente da casa de espetáculos, conforme combinado, mas só entre idas e vindas do telefone ao chuveiro gastou 3 minutos; numa dessas, escorregou, caiu de banda e ganhou um hematoma do tamanho duma coxa; movida por um acesso de ira, arrancou o telefone fixo da tomada, enfiou na privada e deu descarga (mas não desceu); depois perdeu mais 3 minutos tentando falar com o celular de pessoas que talvez, porventura, quem sabe?, poderiam estar ao lado do Caco naquele momento crítico, mas nada. Sentiu um ódio inacreditável de seu amigo mais querido por ele ser diferente e não ter celular numa hora dessas (era horrível querer falar com alguém e não poder), desligou o seu (porque essa bosta não serve pra nada mesmo), ligou a televisão, lembrou que não tinha passado creme rinse, chorou convulsivamente ao analisar o tamanho do hematoma ovalóide coxal e dormiu assistindo A Grande Família. Derrota total.

Por uns instantes, e porque definitivamente não era um ser humano melhor que ninguém, desejou morte horrível ao Gotan Project e seus agentes, que tiveram essa idéia de jerico de fazer uma única apresentação da banda logo no Rio de Janeiro, cidade tão vizinha de Buenos Aires, portanto tão fã de tango ou gotan, que seja. Não dá, gente, não dá: isso é uma falta de respeito!

***

Do outro lado da rua, sob o céu estrelado de uma linda noite de verão, Caco terminava sua latinha de Skol conversando animadamente com o Guto, a Tati, o Marlon, etc. Nenhum deles tinha conseguido ingresso pro show, então eles iam dar um tempo ali esperando a Tita atravessar a rua para pegarem uma outra bocada na Lapa. Pelas contas da Marcinha, que tinha ligado quando a moça estava no banho, ela pintaria por ali em pouquíssimos minutos. Então tá. Desce mais uma cerva aí, fazer o quê.