Contos Claustrofóbicos para a Hanna, parte IV
Para a retenção de Pedro
Ontem era dia de pegar o kit da corrida de domingo. Uma das melhores coisas da corrida de rua é essa aflição que a gente tem de pegar logo o kit, ver de que cor é a camiseta, que número inventaram pra nos definir e que brindes - lógico, os brindes! - vieram dessa vez. Eu sinto uma alegria tremenda na hora de abrir o kit, por isso dei nó em pingo d'água pra pegar o meu logo no primeiro dia, e não no segundo e último, porque nunca se sabe se os melhores brindes serão distribuídos só nos primeiros 200 kits, restando aos outros 2500 participantes uma edição de três anos atrás da O2 e um folheto promocional de algo que nenhuma mente sã compraria com o próprio dinheiro suadinho de guerra.
Chego na banca de distribuição, que alegria, apresento o boleto de pagamento e minha identidade, a mocinha busca meu nome numa lista, tudo parece muito bem organizado, olha meu nome ali!, beleza, agora é só pegar o kit e ir embora. Eu disse ir embora? Bem, eu não podia ir embora porque a mocinha queria ficar com meu boleto tatuado com a autenticação bancária, e tudo seria lindo se este pagamento fosse apenas daquela corrida, mas porque eu tenho amor às árvores e economizo papel de impressora e xerox à vera, paguei duas corridas (a de domingo e a meia-maratona de junho) num só boleto. Ela não acreditou, e eu perguntei:
- Quanto foi a inscrição dessa corrida?
- R$50.
- Que valor você vê aqui no meu boleto?
- R$ 113.
Aí eu mostrei no palmtop o recibo em pdf que discriminava as compras, puxei a calculadora do celular (senão a mocinha se perdia) e somei todos os itens pra provar que o recibo correspondia àquele boleto (mesmo valor, está vendo?), e a mocinha ficou tão aflita com tanta informação que, não teve jeito, ela teve de chamar o Pedro!
O Pedro deve ser o chefe daquela bosta, e aí eu expliquei tudo de novo, tomando todo o cuidado pra não me aborrecer: apresentei minha identidade, mostrei minha cara, perguntei se ele tinha dúvidas de que eu era eu mesma, mostrei no palmtop o comprovante de compras (das duas corridas, com seus respectivos valores), mostrei o boleto bancário original que pagava as duas corridas e implorei, forçando uma barra pro Pedro se achar:
- Pois, é, Pedro. Agora imagina se -- apesar de estar super comprovado que eu sou eu, e que eu paguei a inscrição desta corrida --, eu deixo este boleto aqui e lá na frente, em junho, uma pessoa menos esperta que a gente me pede esse boleto? E aí se eu não tenho nada, nem uma autenticaçãozinha bancária pra provar que eu paguei?, muito embora eu não precise provar coisa alguma, porque essa pessoa fictícia estará diante de uma lista exatamente como esta, na qual meu nome jamais estaria se eu não tivesse, efetivamente, pago a taxa de inscrição.
- É, eu sei que você pagou, mas eu preciso ficar com o comprovante.
- Mas Pedro, por quê? Não está provado que eu sou eu, que eu-e-somente-eu retirarei o kit, e que isto só ocorrerá porque a taxa de inscrição está paga HÁ 2 MESES, e não há mais dúvidas sobre isso?
- Entendo... Mas e se outra pessoa vier aqui e pegar outro kit em seu nome?
- Pedro, olha minha identidade, olha minha assinatura. Eu assino meu nome na lista, que tal?
- Não dá, a gente não pediu pra ninguém assinar. A regra é reter.
Meu sangue dava sinais de fervura dentro das veias, e eu tinha me prometido que a retirada do kit seria só alegria. Pensei em desistir, estava tudo muito difícil, eu não nasci pra esse tipo de confronto, não me sinto preparada pra isso. Da corrida de domingo eu poderia até prescindir porque trata-se de uma reles corridinha fajuta de 5km, mas a de junho é uma meia maratona, pô! E eu paguei por elas, eu tenho o direito de corrê-las. Vai que em junho eu encontro um pedro no meu caminho! Ah, não podia correr esse risco. Tentei de novo, desta vez uma abordagem mais chantagista:
- Se eu deixar meu comprovante aqui, tenho grandes chances de não conseguir correr a meia em junho. E eu tenho asma, correr 21km significa muito pra mim. Nós não queremos que eu perca essa chance, queremos?
- Entendo... Mas eu vou precisar reter alguma coisa aqui. Não posso entregar seu kit sem reter alguma coisa aqui.
Ele falou aquilo com a mesma ausência das criaturas que falam: "eu estarei transferindo sua ligação", então a frase, naturalmente, perfurou meus ouvidos assim: "eu estarei precisando estar retendo alguma coisa aqui, nem que seja um cocôzinho seu". Senti falta de ar e muita, mas muita vontade mesmo de sentar a mão no Pedro. Mas eu tinha prometido a mim mesma que não me aborreceria - é só uma corrida de 5 km, porra! -, então virei as costas e fui dar uma volta no quarteirão. Um brigadeiro, um mini-cookie e um capuccino grande depois, retorno ao local do crime armada: fiz uma xerox do comprovante de pagamento (num valor bem maior que o da corrida do Pedro) + um comprovante de residência + a minha identidade. Na loja de cópias, peguei emprestado um daqueles pilots atômicos de escrever cartaz de promoção em supermercado e escrevi no topo da folha: PARA A RETENÇÃO DE PEDRO.
Agora ele não só pode reter alguma coisa minha, como também pode enfiar no c* e rasgar. Mas isso eu deixei nas entrelinhas, tomara que ele saiba ler.
<< Home