Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sábado, janeiro 17, 2009

A verdadeira maldade de A Favorita

Eu detesto assistir novela. Não que eu me sinta melhor ou intelectualmente mais elevada que todo mundo que assiste, mas é que toda vez que eu cismo de acompanhar uma novela fico com a vida meio limitada entre nove e dez horas da noite, raramente consigo sair de casa cedo o suficiente para evitar a fila do Carioca da Gema, enfim: essa vontade de ficar em casa pra ver hoje o que eu poderia ver amanhã no youtube acaba virando um estorvo na minha rotina, e eu sempre digo que não é isso que quero pra mim, não é isso que quero pra mim, não é isso que quero pra mim. Até que, de repente, uma música que me lembrava vovó e uma cena particularmente delicada entre mãe e filha com a Patrícia Pillar me fisgaram e acabaram por neutralizar o meu mantra: no dia seguinte, lá estava eu, agindo que nem uma viciada na frente da TV.

Acompanhei a Favorita da metade até o final. Na época em que comecei a assistir era legal não saber quem era a boa ou a má. Depois que a má se revelou, todo mundo começou a ficar meio mala, a trama se arrastou, a Flora cometeu maldades demais e teve até jornalista sério escrevendo sobre isso no jornal. Porém, havia algumas coisas que incomodavam mais do que as maldades da Flora: me incomodava aquele bom moço rigoroso de comportamento perfeito, e me incomodava um malinha daquele calibre ser o objeto do desejo de tantas mulheres na mesma trama - apesar daquela camisa xadrez! E tinha a prima dele, outra mala do mato com o cabelo permanentemente no rosto, grávida de não-se-sabia-quem. Estou dizendo pra minha mãe há 2 meses: esse filho tem de ser um acidente de percurso do primo-mala-cassiano, só pra provar pro público que a ética não compensa; que mesmo que a Flora termine morta ou presa, o mal se perpetuará. Os malas se perpetuarão!

E ontem, fim de trama, a gente descobriu que o pai do filho da adolescente grávida era, bem... o seu próprio pai.

Nessa novela, os vilões Flora, Dódi e Silveirinha mataram cachorro, mataram gente; mentiram, roubaram, chantagearam e sequestraram. Mas eu ainda acho que a maior maldade de A Favorita foi mostrada, de forma desconcertantemente suave, no núcleo de violência doméstica da novela: em uma família simples, a esposa era constantemente humilhada e espancada, e a filha estuprada. A Lilian Cabral deu leveza a esse núcleo: para a desforra e alívio de todos, ela encarnou o mulherão que dá a volta por cima. Embora a gente saiba que, na prática, nem todas as mulheres que sofrem violência em casa têm aquela altura, aquele corpão e aquele jeitão de quem vai acabar usando o rolo de macarrão na cabeça do marido. No mundo real, sair desse núcleo onde algoz e vítima quase sempre se encontram num duelo fatal - como essas duas meninas bonitas de São Paulo, Marina Sanches e Eloá, que morreram pelas mãos de ex-namorados possessivos e violentos - é quase impossível. Mesmo quando acaba o relacionamento, quando se cortam os laços, os nossos exemplares de homem truculento, primitivo e espancador de mulher dão um jeito de encontrar sua vítima, sua propriedade eterna, e eliminá-la do planeta, para que ela não seja de mais ninguém.

Eu tive uma conversa sobre isso há muito anos, numa mesa repleta de mulheres. Não me lembro qual foi a vítima-notícia que detonou o assunto na época, mas lembro que fiquei profundamente tocada pelo comentário de uma amiga, que achava que o ciúme era o culpado de tudo. Ciúme?!?, perguntei incrédula. Eu não tinha certeza de muitas coisas, mas sabia que não é o ciúme que mata e esfola. Talvez seja a forma leviana como algumas mães criam seus filhos, anulando-se como seres humanos e fazendo-os acreditar que a mulher é isso aí, uma nulidade, só mais um pano de prato na casa. Ou talvez seja a falta de todas as coisas básicas que a Constituição brasileira prega para que todos os cidadãos tenham um mínimo de estrutura familiar. Talvez nossas leis sejam como uma grande mãe nula, que nos ensina diariamente que não existe Justiça, não existe punição, e portanto não existe crime.

Pensando bem, a verdadeira maldade de A Favorita não foi nem a historinha subliminar de violência doméstica com os atores de Malhação. A verdadeira maldade foi constatar que nem os expectadores, nem os personagens contavam com a Justiça, mesmo quando ela deveria estar completamente a seu favor. Deve ser muito triste viver num país assim, onde a Justiça é objeto cenográfico até mesmo em novela.