Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Texto quintal

Pode ser coincidência -- como também pode não ser --, mas fato é que eu dei de escrever somente às quintas-feiras neste blog. Se fosse aos domingos, eu poderia dizer que meus posts são dominicais, mas sendo quinta um dia da semana sem muitos adjetivos, decretei que este blog entrou numa fase quintal: não no sentido pagodeiro-de-raiz do grupo "Fundo de Quintal", que é super marotão por sinal, mas no sentido de quinta-feira. Porque a quinta-feira também é um dia querido, também é um dia maroto e sobretudo porque, se ninguém antes tinha pensado num adjetivo específico para as coitadas das quintas-feiras, eu acho muito justo que elas ganhem o quintal -- que é um adjetivo neológico querido, extremamente florido e igualmente maroto.

***

Ontem, na clínica, um homem levou uma cadela vendendo saúde.
- O que o traz aqui?, tive a obrigação profissional de perguntar.
- O olho vermelho. Ela está com o olho vermelho.

Pergunta daqui, examina daqui, e o olho vermelho não era nada de mais. Conversamos longamente sobre a saúde da menina, mas o homem sempre interrompia meu colóquio pra falar de coisas que nada tinham a ver com aquele cão ali, e sim com as perdas que ele sofrera recentemente; e repetia a toda hora que não podia, de jeito nenhum, perder também aquele cachorro. Ah, tá.

Às vezes o ser humano está tão só que vai ao veterinário em vez de ir ao psicanalista, ou ao padre, ou ao pai-de-santo, ou ao barman. Relevei, porque eu sou uma "pessoa humana" que, afinal, entende perfeitamente os laços especiais que se formam entre o homem e seu peludo. Estendi-me no exame e no tempo de consulta pra deixar o proprietário confiante de que seu cão estava bem. Mas ele não se convencia. Cheguei naquele ponto em que a gente precisa dar um jeito de expulsar a criatura do consultório, alegar incêndio e evacuar o prédio. A sala de espera bombando, e o homem lá, chovendo no molhado:

- Mas e aí, doutora, me diz com sinceridade: eu vou perder essa cachorra? Eu vou perder, heim?
- Não, pode ficar tranquilo que não vai perder. É um cachorro grande, pesa 28kg. Mantenha-a na coleira sempre ao alcance de seu olhar, que eu duvido que o senhor a perca.
- Mas e se ela morrer? Ela vai morrer?!?

Eu não podia mentir. Porque eu não sei mentir. Então falei a verdade:
- Vai morrer, mas só porque tudo que é vivo morre um dia, com exceção do Oscar Niemeyer. Só que ela não vai morrer hoje, né? Olha como ela está esbanjando saúde, alegre e feliz!

Aí eu aprendi -- porque a gente aprende pelo menos uma coisa nova todos os dias -- que a verdade não pode ser usada inadvertidamente com gente maluca. Esse sujeito não achava que sua cadela estivesse alegre e feliz. Para ele, os entes queridos morrem justamente assim: no auge da alegria e da felicidade. E eu tive de dar meu jeito pra me livrar dele e chamar o próximo, além de passar o resto da tarde inteira fugindo dele, porque ele queria de mim algo que eu realmente não podia dar.

Lítio, talvez. Ou uma garantia de vida eterna, talvez.

Vida eterna? Ah, vida eterna eu não queria, não. Mas já que eu vou ter de morrer um dia, eu bem que queria morrer alegre e feliz. Porque a gente sempre morre um pouquinho toda vez que fica triste, eu bem que gostaria que minha morte fosse a antítese dos piores trechos de minha vida.

Pior coisa que tem é passar a vida esperando a hora de morrer e deixando a vida passar ao largo.