Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

segunda-feira, setembro 21, 2009

Quelônios monk blues

Tem muita gente que choca e sufoca na própria sialorreia quando eu digo que, embora seja veterinária, não entendo nada de urubu, onça pintada, boto ou baleia. "Mas de cavalo e boi entende, né?" Hum-hum. Aí a terra treme com o impacto do queixo caindo no chão. "E nem de bode, galinha, pato, coelho, porco e hamster?!?"  Nem. "Mas e se eu atropelasse um mico leão dourado, espécie em extinção, você teria coragem..." E as situações hipotéticas pipocam. Nessas ocasiões, eu sempre digo a verdade: que conheço um veterinário ótimo que atende todos esses bichos que não são cachorro ou gato. E de cara eu conto algumas histórias que ilustram bastante minha ignorância com os animais exóticos.

Primeira regra de ouro da veterinária: na dúvida, verifique a identidade dos pais.

Eu trabalho num serviço que não tem pronto-socorro. Ou seja: o atendimento é feito por ordem de chegada, e pra saber quem chegou na frente de quem, há distribuição de senhas em dois horários - 8 da manhã e 1 da tarde. Embora não haja atendimento de emergência - e a tolerância de nossa clientela madrugadora para furadores de fila costuma ser zero -, de vez em quando alguém na sala de espera grita: "MEU ANIMAL ESTÁ MORRENDO!" E aí a gente, obviamente, vai ver o que é. Numa dessas, uma mulher, tão logo abri a porta de meu consultório, enfiou nas minhas mãos uma caixa de sapato com uma gata escama de tartaruga, dizendo: "Ela entrou em trabalho de parto há dois dias e o último está atravessado no canal, agonizando, todo roxo." Caraca, diante de um caso prontinho como esse, não havia nada a fazer além de sair correndo pro centro cirúrgico. Cheguei lá que nem primeiro segmento de "E.R.": PREPAREM UMA CAIXA PRA CESÁRIA, RÁPIDO! DISTOCIA FETAL EM GATA MUITO PEQUENA, NEONATO EM HIPÓXIA. PRECISO DE AMBU PEDIÁTRICO, OXIGÊNIO E DE UM TRAQUEOTUBO NÚMERO...."

Aí eu fui ver que raio de traqueotubo eu usaria num gatinho tão minúsculo, e olhei pra ele de novo, e de novo, e de novo, pra perceber só na quinta ou sexta olhada que aquele rato só podia ser filhote de um porquinho da índia; o que fazia muito sentido, porque a mãe, que eu achei que estava encolhida de dor, era na verdade um tipo muito curto e alto de gato, como são todos os porquinhos da índia quando olhados de relance. Sorte que na cirurgia, naquele dia, estava meu professor de todas as horas, o Ricardo, que sabia exatamente o que fazer com um porquinho da índia naquela situação. Eu jurei que nunca mais confundiria predador com presa.

Quelônios blues

A Lorena uma vez me contou às lágrimas como tinha morrido seu jabuti de 30 anos: o pai juntou as folhas secas num canto do quintal e tascou fogo naquela montanha de 3 metros de altura. Dez anos depois, saiu de baixo da fogueira um jabuti em chamas naquilo que eu acredito ser a velocidade máxima de um quelônio desesperado: 200 cm por hora. A Lorena fazia veterinária comigo e estava inconsolável porque internou seu jabuti numa unidade de terapia intensiva, fez fluido, cirurgias de emergência, mas nada deu jeito de salvar seu bichinho. Ela chorava com aquilo, coitada, e eu juro, por tudo que me é mais sagrado, que tudo o que eu conseguia fazer naquele momento era pensar nas cenas mais tristes da minha vida pra não rir do jabuti "running for his life".

Aliás, até hoje, quando eu corro, eu penso nisso: preciso melhorar meu tempo, porque sei que minha vida um dia dependerá do quão rápido eu consigo correr, e a vida de veterinária me ensinou que quem corre pouco pode acabar morrendo queimado no próprio quintal.

Essa história do jabuti sempre me deu a sensação de que eu um dia pagaria um karma quelônico ou, no mínimo, passaria uma eternidade ou duas no purgatório dos jabutis. E não deu outra: quando eu morava em Santa Teresa e a Radija era apenas um filhote ridículo de 5 meses, recebo uma ligação de alguém da minha casa: "Radija atacou o jabuti do Frank". Frank era um alemão que trabalhava na casa em que eu morava, e só naquele dia eu descobri que além de filar nossa máquina de lavar roupa, nosso leite e nosso café, ele filava também nosso quintal, onde ele criava seu jabuti, que meu cachorro comeu. Ou melhor, tentou comer. Na verdade, em defesa da Radija, vou dizer que ela latiu pro Jabuti e ele, que era muito prepotente, escondeu-se dentro de sua casa e ignorou completamente os chamados de minha cã, que na ausência de um adulto responsável que lhe dissesse exatamente o que se pode e não pode fazer com um jabuti genioso, resolveu mastigar o casco do jabuti pra que ele saísse da toca. O resultado não foi nada bonito, me disseram ao telefone. "Parece que o jabuti está  partido ao meio. Se ele não está morrendo, seria melhor que você viesse aqui pra sacrificá-lo e acabar com essa agonia." Minha espinha gelou. Eu estava dando aula de inglês e avisei pra galera: "Sorry guys, but my dog attacked a turtle and I have to run to the nearest turtle hospital right now." Levei o jabuti pro hospital de jabutis mais próximo, o que já era bastante longe pacarái, eles remendaram todas as suas partes e colocaram a resultante no soro imediatamente, mas ele não resistiu aos ferimentos e morreu.  Fiquei arrasada. Meu bebê cão era um assassino confesso, e tudo aconteceu porque eu era uma dona ausente e não estava em casa com ela em todos os momentos de sua complicada e delinquente infância.

Não tenho o menor orgulho da Radija pelo mal irreversível que ela fez ao Jabuti do Frank, mas da mesma forma que não adianta pensar que a gente estará ao lado do nosso cão em todos os momentos, não dá pra ralhar com um cachorro infantil duas horas depois da merda feita.

Quanto ao Jabuti do Frank, eu queria realmente ter tido uma chance de conhecê-lo melhor. Eu nunca tinha tido um jabuti em casa e, quando tive, eis que meu cachorro o come antes d'eu conhecê-lo! Foi só então que eu compreendi a Lorena e a injustiça que é essa antivelocidade dos jabutis: se eles fossem mais rápidos, talvez tivessem alguma chance de escapar dos cães hiperativos e dos incêndios domésticos.