Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Colcha de fuxico



Em setembro de 2003, minha avó Izolina desencarnou aos 94 anos. Foi um grande choque para nós pois, apesar da idade, a véia era totalmente hígida, lúcida, animada, fazia planos pro futuro, tinha uma tchurma na hidroginástica, falava mal de quem merecia, trabalhava e pagava suas próprias contas enfrentando fila nos bancos, como todo velhinho gosta muito de fazer (e ai de quem sugerisse débito automático!). Ela morreu porque foi colocar um marcapasso, uma coisa à toa. Acontece que o coração dela já estava acostumado com um ritmo, e o marcapasso cismou de tentar imprimir um ritmo outro, aí brigaram, o coração e a máquina, e venceu a máquina estúpida. Eu tinha passado a tarde com ela no hospital e falei: "Vó, vou em casa tomar banho e já venho. Chego antes da sua cirurgia. Quer alguma coisa da rua? Alguma revista?". Ela pediu uma revista chamada "Fuxico". E ainda acrescentou, plenamente lúcida: "Mas, olha, eu tenho aquela com uma bolsa de coração na capa. Pode trazer qualquer outra diferente dessa." Comprei duas.

O fuxico, pra quem não sabe, é um tipo de artesanato feito com uma rodelinha de pano franzida a ponto de alinhavo sobre o próprio centro.

Pois eu voltei pro hospital, revistas em punho, pouco antes da hora que me disseram que ela sairia do quarto pro centro cirúrgico. Acontece que os médicos, justo naquele dia, deram de antecipar a cirugia. E eu não vi mais a minha avó viva. Tenho as revistas de fuxico comigo até hoje.

Por sorte, eu tenho mais duas avós vivas. Se há alguma vantagem no divórcio dos pais, isto deve ser o milagre da multiplicação de avôs e avós. Pois uma delas, pouco depois da morte da Zozola, perguntou o que eu queria de presente de Natal. Eu pedi algo de fuxico. Naquele ano, ela não me deu nada, pois resolveu me tecer uma colcha de fuxico que levou um ano fazendo. A minha colcha de fuxico tem mais de mil bolinhas minúsculas e coloridas. Enche meu quarto de vida e pesa uns 10 kg. E eu choro de emoção sempre que penso no peso deste emblema: uma colcha de fuxico é sempre muito mais que simplesmente uma colcha de fuxico: é amor alinhavado em pontos miúdos. Só sabe disso quem tem ou teve a sorte de ter ao menos uma avó adorada.