Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, maio 12, 2006

Minha infância na macumba.

Foto roubada do Flickr de alguém

Nascida num ninho de católicos ecléticos semi-praticantes e ex-aluna de colégio de freiras, eu não tenho religião por pirraça e por preguiça: duvido de quase todas, tenho simpatia por algumas e cheguei à conclusão que religião é dispensável, mas fé é fundamental, não importa no quê. Já experimentei a messiânica, a católica, o kardecismo, pensei em me converter ao judaismo só pra casar com um israelense e, num determinado momento da minha infância, fui macumbeira: ia toda semana ao terreiro com minha família.

***

Brasília, 1978. Vejo Clarice, a empregada mais preta que já tivemos, desmaiada no chão do quarto dos meus pais. Passando por ela a caminho do banheiro da suíte materna, achei que ela simplesmente dormia: fiz xixi de porta aberta e observei que ela não me mandou lavar a mão depois. Naturalmente, fui até a sala, sentei na frente da TV com meus irmãos sem banho e janta, e esqueci da Clarice. Tanto que me causou espanto ver o pânico de meus pais ao encontrá-la ali desmaiada, meu pai sacolejando o corpanzil pesado e amolecido dela pelos ombros, Clarice acordando e explicando, ainda tonta, que tinha tomado "uma porrada da pombagira" e caído. Ficamos todos muito impressionados com aquilo, e eu passei semanas com medo de ir ao banheiro de noite e encontrar uma pombagira no corredor ou atrás do bidê. Me intrigava ter estado ali o tempo todo e não ter visto nada que pudesse ser uma pombagira.

Depois disso, meu pai biológico, uma auto-didata de primeira linha, leu tudo sobre macumba, comprou todos os discos, um atabaque, charutos e virou o melhor amigo do pai-de-santo irmão da Clarice, um vigarista que dizia incorporar um tal de exu caveira - ele sentava num banquinho, dava baforadas de charuto na cara de quem fosse e cuspia cachaça no fogo. Era duma grosseira atroz mas, enquanto showman, o cara era o rei da pirotecnia.

Passamos a ir - as crianças com seus brinquedos, minha mãe com seus livros - quase todo sábado ao terreiro da Clarice em Taguatinga, cidade satélite de Brasília que na época parecia uma vila de interior bem pobrinha. O terreiro era uma festa: lindas fantasias de baianas e fantasmas, pratos de comida no chão, uma profusão de aromas e cores. Eu brincava com os cães e as galinhas pretas que circulavam soltas por lá. Nesses encontros, meu pai tocava atabaque e preparava uma farofa amarela com pimenta que ele queria que a gente comesse com a mão pra agradar o tal do exu falastrão (ai, eu tinha uma antipatia danada por ele!); minha mãe lia fingindo participar e, quando eu tinha sono, Clarice me punha pra dormir na cama dela, forrada com uma colcha pinicante de fios dourados que me dava coceira. Num belo dia, acordei no meio da festa gritando "EU QUERO PIPOCA! QUERO PIPOCA!". Segundo minha mãe, os atabaques se silenciaram e todos aqueles frequentadores do terreiro se entreolharam como se minha fala noturna - provavelmente o sonho duma ida com a família ao cinema - tivesse algum significado religioso sinistro. Depois disso, passaram a me reverenciar, temer e admirar como filha de Yansã, o que me disseram anos mais tarde ser besteira, que eu sou mesmo é filha de Oxum. O engano, contudo, era muito conveniente, pois meu desejo de sacolé era sempre uma ordem, e tinha sempre pipoca fresquinha me esperando na casa da Clarice.

Meu pai não gostou da responsabilidade de ter uma médium em idade escolar em casa. Ficou com medo de sugerirem a raspagem da minha cabeça, coisa que pegaria mal no caretíssimo Colégio Santa Rosa de Lima, e aí, gradualmente, pra não contrariar o exu que ele tanto temia e bajulava, paramos de freqüentar a Clarice. Pena, porque eu amava aquela farra toda.