Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, setembro 05, 2006

Por um Raio de Sol

Tem coisas que é melhor a gente nem saber. Benditos sejam os ignorantes, pois deles é o reino dos céus, já dizia seu pai. Ela não devia ter aberto o envelope e, tendo aberto o envelope, não deveria ter lido e, tendo lido, não deveria ter virado a noite na internet tentando entender o significado daquelas palavras frias, tão frias que pareciam blocos negros de gelo colados ao papel que, em momento algum, demonstravam qualquer solidariedade por uma mãe que porventura lesse: "Pequena zona lítica, com aproximadamente 1,1 centímetros de diâmetro, circundada por tecido ósseo esclerótico, em cortical medial da metáfise proximal da tíbia. Conclusão: A imagem é sugestiva de tumor ósseo...". Aquele era um texto que nada lhe dizia, mas quando chegou à palavra "tumor", palavra conhecida, o chão lhe faltou; uma enorme cratera se abriu no céu e dela pulou um gigantesco dragão negro que urrava e gritava por ela, cuspindo fogo pelas ventas e fazendo ruir a Terra, que o mundo pra ela perdia todo o sentido à medida que voltava à palavra "tumor", a única dali que ela entendia, fazendo com que seu tradicionalmente gigante coração se recolhesse ao insignificante tamanho de uma ervilha. Há sete anos, o piá teve esse mesmo tamanho, mas então estava protegido de todos os males do mundo dentro de seu ventre. Donde nunca deveria ter saído.

Um tumor, ela dizia pra si mesma, pode ser qualquer coisa. Tumor, rubor, calor e humor são os sinais da inflamação, e até uma picada de mosquito podia causar um "tumor". Sentada ali na sala de espera do pediatra, vendo seu filho correr e brincar com as outras crianças, exatamente como as outras crianças, só que puxando discretamente da perna esquerda, ela queria ter certeza absoluta de que aquele tumor não passava daquilo: uma picada de mosquito. E que o médico receitaria gelol, e então todos seriam felizes para sempre. Mas sua ervilha estriada cardíaca latejava da garganta pra boca, na ante-sala do grito, paralisada de pavor. Pavor do tumor. Não devia ter lido o laudo. Se ela não tivesse lido, talvez aquela palavra jamais tivesse sido escrita. E seu coração jamais teria se tornado uma ervilha.


A secretária chama por Rafael, o coração da mãe pára de bater por dois segundos e ele, o Rafa, o cara, pula na frente do médico lhe estendendo a mão, como se não tivesse medo algum de ouvir nenhum papo brabo de injeção. O médico sente a mão fria da mãe e pisca o olho dizendo: "Deixa eu ver se eu adivinhei: você leu o laudo!". Se não estivesse travando a mandíbula pra não tremer de frio -- de pavor? -- , juro que ela teria dito bom dia, mas a urgência lhe impelia a ir direto ao assunto: "Por favor, doutor, me explique tudo bem devagarinho e com muito cuidado, como se eu fosse uma criança de sete anos."

Dez anos se passaram pra ela, mas foram apenas dois minutos para todo o resto do mundo. Ela olhava pro rosto do pediatra, que examinava os filmes, para ver se ele exibiria sinais de desespero, mas ele se manteve impassível -- claro, era um profissional, estava acostumado a camuflar as emoções! -- e, ao fechar o envelope, sorriu-lhe de forma desconcertantemente confiante. Tudo indicava que se tratava de um tumor benigno, e eles teriam de fazer uma biópsia, um isso e um aquilo outro. Que não seria anestesia geral, que o procedimento era seguro, que o menino nem se lembraria disso no futuro. E ela imediatamente entendeu que se precipitou ao julgar Deus um tratante, porém seria absolutamente prudente mantê-Lo sob suspeita até que tudo aquilo estivesse resolvido.

Em casa, o filho confessou, depois de notar os adultos segredendo coisas por semanas, que não tinha entendido ainda o que fariam com a perna dele. E ela explicou que primeiro iriam dar um pum pra ele cheirar, e que o pum seria tão fedido que ele iria cair durinho e dormir, e enquanto ele dormisse, os médicos iriam dar uma injeção no joelho dele, e depois ele iria poder brincar de muleta por quase um mês. Ele não se incomodou com o pum, mas tentou negociar a parte da injeção, só que ela lembrou que ele estaria dormindo, e quando a gente está dormindo não sente nada, pode até pular do abismo que nada acontece. O cara quis saber o que eram muletas, ela explicou e acrescentou que era uma sorte incrível poder brincar de muletas só por um mês, ela mesmo queria ter tido a chance de experimentar esse brinquedo na infância, mas agora estava velha demais pra isso. E assim ele foi pro hospital sem medo, mas chorou ao ver que nem a mãe, nem o pai entrariam no centro cirúrgico com ele. Ainda bem que o pum veio logo, porque o cara gritava, fazendo com que as ervilhas encolhessem no peito dos adultos que ficaram do lá de cá, esperando o menino, que voltou tremendo de frio, com a dignidade fatalmente golpeada pelo avental verde de bunda de fora que todo ser humano, mesmo os filhotes, têm de usar nessas ocasiões especiais.

Mais tarde, já deitada em sua cama, depois de inventar pro filho mil brincadeiras com a muleta e mil prêmios pra quem não encostasse o pé no chão por nada! durante um mês, ela sentiu um medo descomunal, um medão incrível. Era um medo retroativo, seu coração de mãe sabia e podia apostar, mas era, sem sombra de dúvida, o maior medo do mundo.


PS: você me emociona e eu te amo por isso.