Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, janeiro 09, 2007

Traição

Venho por meio deste humilde post revelar à toda blogosfera que eu estou sendo infiel ao meu namorado, Luca. Digo isso sem o menor traço de orgulho, pelo contrário: acho traição uma coisa bárbara, agressiva e asquerosa. E o Luca não merece uma namorada infiel: o cara é ruivo, sarado, tem olhos cor de mel, sempre usa um acessório bacana pra me ver, mora de frente pra Lagoa, sabe sentar e dar a patinha, baba pouco, toma banho toda semana, enfim... é um tipão. Dizem até que ele tem pedigree, mas como eu sou mestiça (tão mestiça que sou quase pura por cruza!), lá de onde eu vim essas coisas não têm a menor importância. Sei que ele é tudo o que uma mulher podia querer num cão, mas não dou nem pelota pra raça de nome estrangeiro que ele tem.

Não quero que vocês pensem que eu não gosto do Luca. Por favor, não me interpretem mal! Eu amo o cara! Quando a gente se vê, a gente se embola no chão, se beija com paixão e faz coisas que deixam qualquer ser humano com muito nojo de mim. É que a gente tem essa química de pele com pêlo, uma coisa meio louca e arrebatadora, sabe? Mas ainda assim, ainda sendo o Luca tudo que eu sonhei num namorado canino, o coração tem razões que a própria razão desconhece. Enamorei-me dum neguinho sem raça definida, lá do canil municipal da Mangueira. Um típico cãovelado. Eu o chamo de Bob, mas pro resto das pessoas ele é "o pretinho do G". Eu chegava no canil e os 120 cães começavam a latir, ora reclamando da minha atrevida invasão de território, ora clamando por minha atenção. E dentre os latidos que pediam meu carinho, e eu poderia dizer, sem medo de errar, que eram pelo menos 50 latidos de todos os timbres e volumes, eu passei a reconhecer o do Bob. E ia lá falar com ele. A gente se beijava pela grade, rápida e furtivamente, pra que ninguém nos visse, e quando dei por mim, já estava enchendo o bolso de doguitos de todos os sabores, pra fazer-lhe uma surpresa diferente por dia. E assim, pouco a pouco, eu e Bob criamos uma ligação tão forte que minha consciência afundou, com o peso de mil pianos de cauda, pela infidelidade que eu estava cometendo com o meu mais que adorado Luca.

Hoje ocorreu um episódio que, finalmente, deu uma guinada em minha vida afetiva: cheguei ao canil coletivo e não ouvi o latido do Bob. Senti meu coração saltar pela boca, só de imaginar que alguém poderia ter adotado meu namorado canino sem antes ter passado por uma rigorosa sabatina (sabe fazer cafuné? pode passear com ele 4 x dia? mora de frente pro mar? o carro tem ar condicionado, pra eventualidade do Bob precisar pegar uma carona na fresca?). Fui ao G, onde o Bob mora e, pro meu desespero, lá estava ele: amuado, nariz inchado, olhos vermelhos, orelha furada e com um pequeno filete de sangue escorrendo-lhe pelo pescoço. Os camaradas do canil tinham coberto meu Bob de porrada, na maior covardia. Ele estava envergonhado de ser visto naquele estado caótico, mas eu fingi que não percebi sua petição de miséria e o tirei dali imediatamente. Levei-o pra passear no jardim e tivemos uma série conversa sobre essa necessidade que eles (os caras) têm de brigar pra mostrar quem manda em quem. Expliquei que eu era dele, só dele, e que os outros podiam falar o que quisessem, mas que ele não ligasse pra nada, pois só o meu amor por ele já era o bastante pra que ele se sentisse o alfa; ou em alfa. Levantei a moral do Bob antes de colocá-lo na mesa do ambulatório, onde ele escondeu persistentemente a fuça no meu sovaco pra que eu não tocasse em seu dodói. Fui delicada, o mais que pude, e limpei aquela bagunça toda. Dei mil rosnados só de pensar nos caras que bateram no meu peludinho preferido e dei-lhe muitos doguitos, toda vez que ele me deixava cutucar sua orelha perfurada a dente. Depois, porque eu sou covarde, chamei um auxiliar pra me ajudar a dar uma injeção dolorida de benzetacil no meu bobinho. E garanto que doeu mais em mim do que nele, que nem reclamou, de tanto que me ama.

Findo o curativo e a sessão de cafunés (só na orelha boa), entrei no canil antes dele e tive um particular com os outros caras. Eles escutaram, envergonhados, e entenderam que tinham se excedido. Tudo podia ter se resolvido ali, naquela conversa, mas quando o Bob entrou no canil novamente, a porrada comeu geral. Culpa minha: afinal, eu não tinha nada que ter dado moral justo pro cara que apanhou, mas eu dei meu jeito de contornar a situação, cocei a barriga de todos, fiz curativo num branquelo que saiu mancando da primeira briga e, no final do dia, tomei uma decisão: vou terminar com o Luca.

Não dá pra amar dois caras ao mesmo tempo, porque quando a gente ama, é claro que a gente cuida. E pra cuidar de dois... haja tempo!