Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

segunda-feira, agosto 20, 2007

É tudo muito tocante

Coisas que mexeram profundamente comigo nesta viagem, até o momento:

1) A Incrível Tasca Móvel, com show do O'Questrada, a banda mais teatral, original e clown de que tenho notícias. Fui duas vezes vê-los nesse circo sem lona, a céu aberto, dentro do mais do que lindo Centro Cultural de Belém (uma espécie de MAM daqui, sem querer ficar fazendo essas comparações, que alho nunca é igual a bugalho ou vice-versa). Fiquei tão fã, que aplaudi de pé até me sair a pele das mãos. Não bastasse isso, comprei um CD e pedi autógrafo a todos os componentes da banda. Autógrafo, como se sabe, é essa coisa jeca que as pessoas fazem quando se vêem diante de um extra-terrestre talentoso fodástico que, somente na aparência, é um ser humano como outro qualquer. Eu me ofereci como escrava ao Fábio Pareto, meu amigo de fé e irmão camarada, por ter me apresentado à Incrível Tasca Móvel (sei que é escroto comparar, mas é como um circo voador daqui, nos velhos e bons tempos em que era itinerante) e à banda que tem a cantora mais sexy que já vi, uma portuguesinha de cabelos crespos e flor no cabelo chamada Miranda, que sabe que cantar não é só abrir a boca e soltar a voz, mas sim mexer com todos os sentidos do expectador. De muitas formas, ela me lembrou uma amiga, a Dani Pureza.
2) O Fado: quis colocar o fado dentro da minha pele. Na verdade, ele se implantou no meu coração, mas já há tanto barulho e confusão ali dentro que eu preferia um órgão mais ao alcance da mão.
3) O ser humano: podem falar o que quiserem sobre as pessoas de um lugar ou de outro. Há bom e mau em tudo que nos cerca e em toda a gente; há pessoas mais espontâneas, outras mais reservadas; há pessoas que têm coragem de se olhar, outras nem coragem nem desejo; há aquelas pessoas que transitam em torno do próprio umbigo, há as que só se preocupam com o umbigo do outro. Na verdade, toda pessoa é única, e eu concluí, somente agora, que eu sou fã do ser humano, seja ele um amigo dos animais ou um tosco que abandona seu cão nas férias. Acredito que todas as pessoas têm conserto naquilo que lhes é defeituoso na alma, e essa esperança me deu um tesão redobrado de voltar ao Brasil e fazer meu trabalho com o afinco de quem quer -- e vai -- mudar o mundo. Há de se começar por algum ponto, e este ponto há de ser o ser humano. O que me leva a outra coisa que muito me comoveu aqui, em Portugal:
4) O corpo humano: visitei a exposição Bodies, aquele que quase fez a Marcela desmaiar. Iniciei o percurso com verdadeiro espírito científico, impressionada com a beleza das peças e com a técnica utilizada para preservá-las em tantas cores e detalhes. Mas foi só chegar na parte que mostrava o aparelho digestivo, parte por parte, que senti meus joelhos amolecerem quando olhei assim, cara a cara, o pâncreas. O pâncreas é como uma língua enrugada, fino e comprido, mas muito pequeno. O corpo humano é composto por tantas outras coisas volumosas que fariam vergonha às diminutas dimensões dessa pequena lingueta insignificante, e pensando nisso tudo, senti que minhas lágrimas ensopavam a vidraça e, não mais que de repente, caí num pranto convulsivo, que me fez fugir por uma saída de incêndio. Entendo, porque tenho muita noção de como funciona nosso corpo, mas não aceito que um tumor de dois centímetros, num órgão tão ridiculamente pequeno, tenha ceifado de forma tão rápida e avassaladora a vida da pessoa que mais amei nesses 35 anos. Se Deus existe e fez nosso corpo assim, tão perfeito, por que criou junto a doença sem cura? Por que não se contentou em criar doenças curáveis apenas, para que algumas pessoas possam refletir sobre suas próprias limitações e, assim, abram as portas de seus corações para uma forma mais plena de amor e respeito ao próximo. Se Deus existe, ele deveria ter refletido melhor sobre isso tudo.
5) Estávamos, Fábio e eu, na fila pro check-in Lisboa-Madri. Subitamente, nossa animada conversa foi interrompida pelo odor insuportável que exalava de um homem, nem bem nem mal vestido, que parou atrás de nós. Depois de alguns segundos de silêncio sepulcral, meu amigo me solta a seguinte pérola: "Algumas pessoas vêm ao mundo apenas para existir." Revoltada, dei-lhe tabefes, blasfemei, defendi a complexidade do ser humano (de quem sou agora fã declarada), que todos temos anseios, receios, amores, aspirações, frustrações, família, enfim, uma gama infinita de variáveis que nos torna únicos, e não uma bolha d'água que se forma e logo desaparece na chaleira que ferve. Fiquei bastante brava com ele por isso, e ele insistia em sua convicção de que aquilo era verdade e, sim, que era uma verdade triste, pois que triste é viver só para acordar, trabalhar, pagar contas, não se gostar e dormir. Ou seja, que triste que é apenas existir, e não viver. Entrei no ônibus com isso, indignada, e passei toda minha semana em Madri refletindo sobre esse absurdo, que em pouco tempo me pareceu bastante verdadeiro, o que me leva ao próximo e último, prometo, ponto tocante:
6) Reencontrei o Renato André, meu querido de muitos anos, lindo como nunca, e mais bem acompanhado que em qualquer outro momento de sua vida: ele agora tem um labrador dos sonhos, meu novo namorado canino, o Simba, e uma namorada espanhola linda, a Beatriz. Como estava trabalhando como louco, pela primeira vez em toda a viagem eu tive a chance de passar três dias completamente sozinha, entre belas paisagens, Picassos e corridas nos jardins do Bom Retiro. Completamente sozinha, não: eu e meus pensamentos complexos, sobre a perfeição do corpo humano e a morte, esta coisa paradoxal que acontece em máquinas feitas para funcionar muito bem; sobre a existência de vida depois da morte (e chorei como um bezerro desmamado ao ler epitáfios em tumbas de reis e rainhas, onde se lia coisas como "Est humana fugax gloria: disce mori." e "Vita ex morte"). No mosteiro del Escorial, quando vi padres passando rapidamente de uma área pública a outra privada, tive ganas de me ajoelhar diante deles para pedir uma garantia de que existe vida depois da morte; que se não existir, então viver nõ faz sentido, e talvez o Fábio tenha razão: talvez sejamos apenas bolhas que vêm e vão, e a existência é uma coisa vã. Fiquei profundamente deprimida na estação de trem, com o doloroso pensamento de que, se a morte fosse uma viagem de trem, eu gostaria muito que na minha estação de chegada estivessem me esperando lá, com flores, sorrisos e braços abertos, minha avó, minha tia Téia, meu cachorro Polaco e ele, o grande amor da minha vida que o pâncreas levou.
Tenho andado à flor da pele, mas hoje vou conhecer com a Cristina o maio oceanário da Europa. Vou chorar, sim, claro, mas por motivos mais felizes.