Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, setembro 12, 2007

Pequenas elites e uma tropa de milagres

No domingo, enquanto eu passava por um dos maiores sustos afetivo-materiais da vida (meu HD, ilustre tipo faceiro que nunca tinha me dado problemas, quase faleceu por assoberbamento, mas salvou-o o Picolé, meu herói para assuntos computacionais), fiz dois pequenos intervalos nos meus rituais pré-ensaiados para o apocalipse: assisti a um filme e uma peça de teatro.

Seria banal, se a combinação das duas experiências não fosse a melhor metáfora do Brasil que conheço. Durante as doze horas que passei na companhia desse grande computólogo hackeriano, que abria e fechava janelas negras e azuis em dois ou três monitores diferentes (o equivalente cibernético ao CTI coronariano humano), enquanto eu nada entendia -- ou melhor: só entendia que meu problema, ou melhor, o do meu HD, o que dá no mesmo, era sinistramente grave --, tive acesso, digamos assim, ao filme "Tropa de Elite".

Aparentemente, todo mundo sabia que o filme "vazou" da produtora antes de chegar aos cinemas, o que definitivamente deflagra a prática comum do roubo e da pirataria, mas todo mundo sabe que, aparentemente, se é a gente que rouba, não tem problema algum. O problema é quando os outros nos roubam. Existe essa estranha lógica no nosso país. Pois eu confesso que roubei, confesso que assisti e confesso que gostei do filme "Tropa de Elite". Fiquei chocada, tive vontade de vomitar sangue, virar o rosto, fazer uma tatuagem de caveirão, comprar uma bandeira do Brasil, comprar o filme, ler o livro e dar pro Wagner Moura. Pra dizer o mínimo. Para me redimir de meus pecados morais e cívicos, venho por meio deste humilde post jurar, de joelhos e com um saco plástico de asfixia na cabeça, que comprarei o DVD, assim que o oficial (com duplo sentido, por favor) estiver à venda.




"Tropa de Elite" não foi feito pra enaltecer o BOPE, a tropa de elite da polícia militar, mas pra escorraçar com a elite alienada que discute teorias, filosofia e política entre um chope e um baseado, ou entre um jantar, uma noitada e um brunch. O filme é um tapa na cara dos merdas, como eu, que falam mal, mas não entendem que vivemos em estado de guerra, e que guerras exigem que tomemos partido, não admitem neutralidade. O filme é um soco no estômago dos que discorrem sobre partidos e plataformas eleitorais, mas nunca subiram um morro pra constatar que o Poder Público nem risca, nem atua sobre 80% da população brasileira. Já disse e repito: estou farta de discutir política com quem não elege presidente. Esqueçam a classe média, essa parcela cada vez mais insignificante da população, incapaz até de eleger presidente e que, portanto, não serve pra porr'alguma. Quem não serve pra eleger um presidente que rejeite visceralmente a corrupção, que por sua vez não derruba um filho da puta como o Renan Calheiros porque é um filho da puta ele mesmo, não tem qualquer utilidade, a não ser pagar impostos altos (a lei do Robin Hood) e viver em torno do próprio umbigo. Voltem suas cabecinhas pensantes praqueles que, na opinião superficial de todos os filhos da PUC e outras instituições elitistas de ensino superior, não sabem pensar. Não sabem, o caralho! Tentem agir conforme seus fortes preceitos éticos e morais dentro de uma favela, depois me contem como foi (se é que morto conta alguma coisa).

Pois eu passei muito mal com "Tropa de Elite". Passei mal a ponto de querer me matar. E como o dia já estava incrivelmente fantástico e fatídico, com grandes chances d'eu perder tudo que tinha no meu caquético e narco-epiléptico HD, porque tudo que tenho é o que escrevo (e nada mais), e como eu tinha ingressos pra "Pequenos Milagres", o último espetáculo do Galpão, em cartaz até o final de setembro no SESC Graça Aranha, implorei pro Picolé me fazer companhia.



Fomos ver a peça e, duas horas depois, eu era o extremo oposto da expectadora-padrão de "Tropa de Elite": eu saí do teatro acreditando no sonho, no ser humano, na beleza, na delicadeza e na inventividade. Saí chorando, sobretudo porque "Pequenos Milagres" foi uma peça baseada em cinco estórias reais, e eu mesma mandei uma das minhas pra seleção deles (não foi encenada, mas entrará no livro "Pequenos Milagres e Outras Histórias"). Chorei com a capacidade que a gente tem de sonhar, de acreditar, de seguir em frente, enfim, "de se gostar", parodiando a última fala do menino de 11 anos cuja estória permeia, como um fio condutor, todo o espetáculo. Chorei ainda mais de imaginar minha estória, na verdade uma experiência maternal da minha musa Gabi Amaral, sendo contada no palco: acho que meu coração jamais resistiria à emoção de ver um texto que eu escrevi em cena.

Ainda assim, comprei passagens para estar em Porto Alegre no feriadão de 12 de outubro, pra ver, todos os dias, "O Conselheiro", peça que eu ajudei o Michele Caetano a escrever. Pode ser que eu sobreviva, pode ser que não.

Enfim, depois de tantas emoções que vivi, do HD externo que comprei (que ele aguente firme até que eu tenha dinheiro pra comprar um outro laptop), o fechamento é este: existe no mundo uma pequena elite (mas é bem pequena mesmo, vocês não têm noção do quão minúscula ela é) realizando pequenos milagres. Qualquer milagre, qualquer coisa que contrastre com o perdão institucional ao verme do Renan Calheiros, qualquer atitude isolada contra a podridão em que estamos mergulhados até o pescoço, como uma ilha cerebral cercada de merda por todos os lados, deve ser comemorada com alegria.

Em Lisboa, perto da Rua Augusta, uma ruazinha assim, turística e movimentada, numa parte, digamos assim, bastante nobre da cidade, me vem um cara vender um biscoitinho estilo cream-cracker, entre marrom e esverdeado. Dava pra ver que era coisa orgânica, natureba. Eu, seca que estava pra comprar barrinhas de cereais, coisa rara de se achar em Portugal, e poder comer algo light de 3 em 3 horas que não fosse nem pastelzinho de nata, nem um outro docinho qualquer, perguntei, inocentemente: "Ah, que legal: esse biscoitinho de fibra é de quê?" Ao que o traficante me respondeu: "de maconha". Foi ele dizer isso, e foi eu ter já tomado duas cervejas num dia quente e seco, que eu subi nas tamancas e gritei: "SAIA DAQUI, SEU VERME NOJENTO! SEU TRÁFICO DE DROGAS CAUSA PROBLEMAS NO MEU PAÍS QUE VOCÊ NEM PODERIA IMAGINAR, PORQUE TE FALTAM NEURÔNIOS PRA ISTO. SOME DAQUI, OU EU VOU CHAMAR A POLÍCIA!" E os garçons me deram as costas, os clientes me deram as costas e, de repente, não mais que de repente, num país estrangeiro, fiquei eu, sozinha, frente a frente com o inimigo, trocando ofensas que eu jamais teria coragem de repetir, nem com licença poética, com o cu na mão e o coração na boca, sem saber se eu sairia viva dessa.

No Brasil, tenho quase que certeza absoluta que não. De certa forma, fui covarde, porque contei com a civilidade dos traficantes portugueses, que certamente é algo melhor que a dos brasileiros, mas ainda assim reconheço que fui elite. E realizei um pequeno milagre. Rogo a que todos os que mais amo no mundo vençam, assim, uma batalha ética por dia, pra que, um dia, eu tenha novamente fé na humanidade e esperança de criar meus filhos, se é que os terei.

O baque do Renan -- y otras cositas más -- nessas últimas semanas parecem ter me convencido, ao menos temporariamente, que filho de cu é rola.