Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, março 04, 2009

Tonha

3 filhos. Não sei como são as coisas hoje em dia, mas quando eu era criança, era brabeira criar 3 filhos sem o auxílio de uma empregada "de confiança". Não adiantava pôr anúncio pra babá, que babá era tabu demais na década de 1980. As domésticas só atendiam aos anúncios de "empregada", pois ser babá significava usar um aventalzinho ridículo, uma touquinha idem e ser eventualmente comida pelo patrão numa pornochanchada. Doméstica era muito mais digno, tinha caso-verdade e tudo, tinha música sindicalizada do Eduardo Dusek, etc e tal.

Mesmo usando o termo correto para a época, minha mãe sofria, por assim dizer, para encontrar uma doméstica que durasse mais de sete dias no emprego. O emprego consistia, basicamente, em cuidar -- praticamente descuidando -- de 3 crianças completamente educadas, completamente limpinhas e completamente maravilhosas: nós, os filhos de minha atribulada e assalariada mãe.

Só que nós nunca fomos tão perfeitos, educados e limpinhos assim, a verdade é bem esta. De forma que as empregadas nunca duravam muito tempo no emprego, e por isso minha mãe começou a "importar" domésticas de Miguel Pereira, cidadezinha serrana microscópica onde todo mundo se conhece (e onde a má fama se espalha como água morro acima e fogo morro abaixo) e onde temos casa desde sempre.

A Antônia foi uma das primeiras empregadas Miguel Pereirenses que tivemos. Não levamos muitas horas para descobrir que ela era alcóolatra, mas entre um alcóolatra honesta e uma cleptomaníaca incorrigível, é claro que minha mãe optou pela etílica honestidade do ser. Antônia era tão alcóolatra que bebeu os perfumes de mamã e, não bastasse isso, o álcool de cereais com que minha mãe fazia umas brincadeiras de perfume. Por ser muito alcóolatra, é claro que eventualmente ela se metia em uma ou outra confusão, mas nunca em nossa casa, e sim em sua própria casa, nos seus próprios domínios. Em nossa casa, a Antônia apenas dormia, porque coisa que alcóolatra gosta de fazer é dormir bastante, sobretudo na hora do almoço das crianças.

Das confusões etílicas fora de nossos domínios, só tivemos contato com uma: foi um dia em que ela apareceu em nosso portão de Miguel Pereira com uma cachoeira de sangue a lhe correr pela cabeça, prontíssima para embarcar em mais uma semana normal de trabalho depois de tomar uma enxadada na cabeça. Enxadada, do verbo bater com uma enxada na cabeça de outrem até sangrar. Um descuido etílico do marido, por assim dizer.

Ela e o marido, por sinal, viviam às turras. Numa noite de domingo, descendo a serra em direção ao Rio com a Antônia no banco de trás conosco, descobrimos que ela e o marido tinham se engalfinhado mais uma vez naquele final de semana. A novidade era que ela tinha enfiado uma facada ou duas no marido, coisa que ela contava com muito orgulho para nós, crianças de nove e onze anos. "Facada, Antônia?!? Mas que coisa brutal!!! E ele vai deixar barato assim?"

Admito que, embora crianças inocentes, nós botávamos uma certa pilha.

"Ele disse que ia me matar com a mesma faca que eu tinha enfiado nele, mas não vai não". E por quê, quisemos saber. De onde essa mulher alcóolatra fantástica tirava tanta certeza?!? "Porque eu trouxe a faca comigo, ó". E tirou do casaco uma peixeira que evisceraria facilmente a Moby Dick, e eu me lembro claramente do enorme desconforto que senti ao passar mais uma hora caladinha dentro daquele carro lotado, ao lado de uma faca assassina e sua portadora-quase.

A sorte é que a portadora-quase também tinha seus momentos fofos, ou quase fofos. Isso apagava efemeramente a imagem da mulher que apunhala o marido e ainda lhe esconde as facas da casa. A Antônia também peidava fedido, e isso, pra nós, que éramos crianças e éramos normais, era um verdadeiro dom. Teve um dia em que meu pai foi à área de serviço catar algo em sua caixa de ferramentas e, no meio da catação, sentiu uma onda pestilenta lhe invadir as narinas, corando sua face de um azul esverdejante de asfixia tóxica. Olhou pra cima -- e até hoje ele gostaria de jamais ter olhado -- e viu a Antônia controlando o riso e com um biquinho muito maroto, como quem assobia para disfarçar a alegria de ter aniquilado o patrão. Foi por pouco, ele diz. Mais um flato e ele talvez hoje não estivesse entre nós.

Eu realmente não sei o que aconteceu com a Antônia. Gosto de pensar que ela simplesmente não apareceu em nosso portão miguel pereirense num domingo à noite pra descer a serra conosco. Que esse foi o jeito dela de dizer, ó, seus merdas, arranjei coisa melhor. Contudo, ainda sinto uma tristeza enorme toda vez que penso que o marido talvez tenha encontrado aquela peixeira com a qual jurou se vingar.

Tem coisas que as crianças nunca vão saber.