Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, julho 31, 2009

Jerônimo

Odeio me gabar disso, até porque não vejo vantagem nenhuma no fato, mas fato é que eu sabia, desde os 7 anos de idade, que queria ser veterinária. Na verdade, bem antes disso eu já alimentava a fantasia de como seria bacana poder passar a mão na cabeça de um animal fofão e bem feroz como o leão, por exemplo, mas todas as evidências me levavam a crer que, para experimentar a aventura de passar a mão na cabeça dum leão, o agente deveria ser ou um desenho animado, ou um super herói. Até que um belo dia, minha mãe, durante uma elucubração elaborada na minha saída do jardim de infância, sugeriu que um veterinário também poderia fazer uma coisa dessas sem ser devorado e sem ser desenho animado; aí eu perguntei que diabo de bicho era esse tal de veterinário, ao que ela respondeu: "Veterinário é o médico que cuida de bicho, ué". Eu achei tudo muito lógico e muito justo, e então, de alguma forma, fui guardando no compartimento de trás do meu cérebro a informação de que eu precisava ser isso um dia - veterinária -, já que eu de alguma forma suspeitava que, por mais que eu quisesse, jamais viria a me tornar um desenho animado (apesar de toda a paixão que eu nutria pelo Speed Racer).

Não quero dizer com isso que passei incólume pela crise vocacional dos 16-17 anos, quando as crianças precisam decidir o que vão ser quando crescer e para o resto da vida, pois não há nada mais apavorante do que tomar uma decisão dessas tão precocemente. Pior que isso só aquele terrorismo que faziam com as crianças na hora de cantar os parabéns: e aí, o primeiro pedaço é da mamãe ou do papai? Afinal, de quem você gosta mais? E agora, o que você vai ser quando crescer? Ó, tá na hora de crescer, heim...

Até os 15 anos, eu tinha total convicção de que seria veterinária, só não sabia se queria me formar em Santa Maria ou Cornell. Meus amigos da escola participavam de dinâmicas de orientação vocacional e respondiam elaborados formulários com psicotécnico e tudo pra saber se eram pessoas humanas, exatas ou biomédicas. E eu, que tinha certeza que era biomédica, passei a me arrebentar em física e química, que eram matérias que - todos os meus professores me garantiam - iriam ME FAZER UMA FALTA DANADA na faculdade e na vida de médica-qualquer-coisa.

Combati meu fracasso em física e química com trabalhos espetaculares nas feiras de ciências, o que sempre me garantia a nota mínima para passar de raspão nessas matérias nos 3 anos do segundo grau. Mas foi na passagem do primeiro pro segundo ano que surgiu minha primeira dúvida vocacional: o Jerônimo, meu professor de português, me perguntou o que eu pensava em estudar quando saísse da escola. "Veterinária, ué." E ele: "Você nunca pensou em fazer jornalismo? Escrever?"

Confesso que fiquei absolutamente chocada com o questionamento dele. Desenvolvi paranóias instantâneas a esse respeito. Talvez a professora de química tivesse acabado de comentar na sala dos professores - e o Jerônimo, que era um cara discreto e bacana, acabou ouvindo - que a Vanessa Ornella jamais passaria no vestibular de veterinária com tamanha debilidade em química orgânica. E aí ela teria se perguntado se haveria tempo de alguém convencê-la a mudar de idéia - talvez um vestibular pra assistência social, museologia ou pedagogia -, e todos os professores se teriam rido, menos o Jerônimo, que era circunspecto e discreto, e que aproveitaria a aula do próximo tempo pra me validar, pois só ele sabia que eu não era, de todo, um casinho perdido.

Olhei pasma pra cara do Jerônimo. Pra mim ele era bem velho, velhinho de dar dó. Hoje, contudo, imagino que ele devia ter uns 50 ou 55 anos, mas seus cabelos grisalhos e oleosos, emplastrados nas têmporas, a expressão cansada e uma cicatriz profunda da armação dos óculos na metade de seu pontiagudo nariz lhe conferiam um ar matusalênico. Eu sempre respeitei os mais velhos, ainda mais imaginando que os mais velhos poderiam simplesmente estar me defendendo de professoras descaradas de química orgânica. Ele suspirou profundamente e repetiu a pergunta, como se nunca a tivesse feito:
- Você nunca pensou em escrever?
- Não, professor. Nunca.
- Pois deveria.
Mesmo tendo medo que ele me dissesse que meu fracasso em física e química deveria me fazer pensar numa área mais "humana e fácil" do lodoso terreno vestibulânico, perguntei:
- Mas por quê?
- Porque você escreve muito bem.

Eu tive pena do Jerônimo ali, tão Dom Quixote, me defendendo da professora de química. Foi por isso, e não porque eu acreditava genuinamente na versão dele, que eu comecei a agir como uma pessoa que escreve muito bem. Ou seja: fiquei marrenta.

Passei a confrontar o Jerônimo com minhas notas de redação: "Pô, professor, você diz que eu escrevo bem, mas todo mundo da turma tirou 9 e 10 na redação e só eu tirei 7,5. Qual é o meu problema?!?" E ele respondia, com toda a paciência do mundo: "Eles escrevem pra tirar 9 e 10; você escreve porque gosta, então seu texto pode ficar bem melhor do que isso." Ou seja: em pouquíssimo tempo, eu não só deixei de ser marrenta, como passei a ter certeza absoluta de que não era nem exata, nem humana, nem biomédica. Acho que este foi o ápice de minha crise vocacional.

No final do segundo grau, o Jerônimo escreveu no meu caderno de dedicatórias: "Continue com seus belos textos." Foi a dedicatória mais curta e mais significativa de toda a minha vida, porque isto sim, e não o medo de ser reprovada nas provas de química e fisica do vestibular, que me fez pensar que veterinária poderia ser uma escolha idiota: meu professor de português achava que eu escrevia bem, então seria apenas lógico que eu escrevesse. Mas quem escreve... precisa mesmo estudar? E se precisa estudar, deve estudar o quê? E afinal, quem escreve vive do quê? (nunca me ocorreu que alguém pudesse viver de escrever)

Acontece que eu não conseguia abandonar a fantasia infantil de acariciar leões em sua intimidade selvagem, por isso acabei prestando vestibular para veterinária e psicologia (porque toda pessoa com problemas emocionais fortíssimos faz vestibular pra psicologia na esperança de estudar a própria cura - e algumas se descobrem esquizofrênicas no meio da graduação). Depois de um ano de cursinho pra sanar minhas deficiências físico-químicas (as matemáticas nunca foram sanadas), passei nos dois concursos e acabei optando por veterinária porque, no advento da pior das merdas, eu preferiria ser veterinária e pagar pra me deitar no divã de algum analista do que ser psicóloga e pagar um veterinário pra pôr a mão no meu leão. No meu leão, dá licença, mas só quem põe a mão sou eu!

O pior de tudo é que, no final das contas, o Jerônimo morreu sem que eu tivesse tido a chance de lhe dizer que ele foi o professor que eu mais amei em toda a vida. Muitas vezes ainda me pego escrevendo pra buscar a aprovação dele, para que ele nunca se frustre com as escolhas equivocadas que eu certamente fiz na vida, apesar de todo bem que ele me queria.