Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

segunda-feira, julho 27, 2009

WSAVA

Estive em Sampa na semana passada pra um congresso de veterinária. Meu hotel ficava em Paraíso e o congresso ficava no fiofó do judas, em Santo Amaro. Pra quem não conhece Sampa, como eu, basta dizer que entre um ponto e outro há apenas 18km, distância que eu corro preguiçosamente em duas horas, tempo idêntico ao deslocamento de carro de um ponto ao outro na hora do rush, que, em São Paulo, bem... é o tempo todo. Minto: há a hora do rush e a hora do rush macabro, como quando chove, por exemplo, e um painel eletrônico funesto anuncia 103 km de engarrafamento na Marginal Tietê. Isso ocorreu comigo no último dia, quando levei duas horas, 45 minutos e duas doses do meu tarja preta favorito (porque tarja preta serve pra isso mesmo, pro contribuinte não se aborrecer) pra chegar ao congresso. E apesar de ter passado quase tanto tempo presa nos engarrafamentos quanto assistindo palestras, eu juro que não me aborreci (porque eu sou terminantemente proibida de me aborrecer).

É bem verdade que, para não me aborrecer, eu entoava todos os dias o meu mantra cínico favorito em São Paulo: "Tudo bem levar duas horas pra ir de um ponto a outro na mesma cidade, pois esse será um tempo bem empregado na observação de pessoas, seu comportamento, métodos de remoção meleca e vestuário". Fazia um frio semi-relevante na terra da garoa, frio suficiente pras meninas usarem as combinações mais esdrúxulas de cachecóis e botas. Eu não entendo nada de moda, mas adoro observar o jeito de vestir das pessoas. Quando me perdi no metrô no segundo dia -- coisa que sempre me acontece por causa dessa mania ridícula que eu tenho de preferir seguir fluxos de gente a mapas --, eu descansei minhas retinas admirando os incontáveis pares de botas, saltos e tênis que desfilaram por mim nas passarelas populares de Sampa. Sempre fico encantada com a capacidade que as megalópoles têm de conter amostras representativas de toda a biodiversidade humana. São Paulo é o melhor zoológico de gente do Brasil, assim como Nova York é do mundo.

Eu fico impressionada com a capacidade que algumas fêmeas têm de se equilibrar sobre saltos. Algumas até conseguem correr assim, com o aquiles encurtado e os dedões oprimidos num bico fininho. Sempre penso que correr sobre saltos de bico fino é quase tão bizarro quanto um quadrúpede andando apenas sobre um par de patas. Sei que isso é possível, eu até já vi no Youtube, mas é extremamente intrigante. O corpo não foi feito pra isso.

O corpo humano também não foi feito pra suportar o tipo de comida que serviram em caixas de papelão no congresso para nós, delegates. Poxa, só porque somos veterinários, os manu quiseram nos dar ração: uma caixinha de suco de açúcar com alguma molécula artificial sabor fruta, um pacotinho de biscoito salgado, um pacotinho de biscoito doce, um bombom, uma caixinha de leite achocolatado sintético, um sanduíche de queijo com algum embutido de aspecto duvidoso e, eventualmente, uma banana de casca cinzenta modificada geneticamente pra sobreviver ao frio da geladeira onde morou nos últimos 30 dias. Mas eu encarei essa gororoba bravamente, porque o tarja preta é meu pastor, e nada me faltará. E eu rezava fervorosamente antes das refeições: jurei que se meu fígado sobrevivesse a essa empreitada anti-gastronômica, eu passaria uma semana inteira comendo só sopa de legumes e chá verde, correndo todos os dias, respirando a brisa do mar e sendo saudável, amém.

A coisa que eu mais gostei do congresso mundial de clínicos de pequenos animais: descobrir que o tratamento do câncer é mais avançado em cães que em gente, embora os preços dos tratamentos ainda sejam proibitivos e ainda haja veterinários que relutem em operar tumores mamários pra não sujeitar um animal idoso ao risco da anestesia. Não sei de onde essa gente tirou tanto medo de anestesia. Ter medo de anestesia é como ter medo de andar de avião: todo anestesiado pode morrer, assim como todo avião pode cair, mas você nunca vai ver uma companhia aérea alardear esse risco. E de mais a mais, prefiro mil vezes uma morte anestesiada do que uma por metástase pulmonar e hepática. Não entendo quem prefere exatamente o oposto.

Coisa que eu menos gostei: descobrir que o Brasil é o único país do mundo a preconizar a eutanásia para cães soropositivos para leishmaniose. No resto do mundo, a profilaxia tem por base o combate ao mosquito, e não à sua vítima, o pobre cão. Matar um cachorro positivo com chance de cura clínica (pois a cura parasitária é improvável) me lembra daquela piada do homem que tenta evitar que sua mulher seja novamente adúltera dando cabo do sofá, onde ele a flagrou com outro certa vez. Todo autoritarismo é burro, e a ditadura militar parece ter deixado esse ranço de burrice em nossa estrutura administrativa.