Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, agosto 18, 2006

A viagem

"A viagem de Heitor", de François Lelord: traduzido em 18 países.

Heitor é um psiquiatra que decide fazer uma viagem ao redor do mundo para tentar entender o que é essa tal felicidade que tanto buscam seus pacientes existencialmente vazios.



Como podem imaginar, este é um livro que se encontra nas prateleiras de auto-ajuda das principais livrarias, ao lado dos livros de Osho e daqueles que listam 10 mil razões para ser feliz. Porque surgiu aqui em casa pelas mãos da minha mãe, e eu não tive de buscá-lo na seção de auto-ajuda duma livraria (eu sempre evito essas prateleiras, pois é só ver quantos títulos surgiram com as palavras "queijo" e "inteligência emocional", que logo me dá uma irritação danada), eu li "A viagem de Heitor", de François Lelord, livre de preconceito. Foi uma grata surpresa, e eu recomendo a todos essa leitura leve que conduz a uma reflexão quase que distraída do real motivo de nos mantermos vivos. Em maior ou menor grau, por teimosia ou talento inato, todos buscamos a felicidade. E todos sofremos quando nos distanciamos dela.

Há muitos anos, li um livro intitulado "Afinal, o que você quer? Ter razão ou ser feliz?". Eu e minha fiel escudeira na época, a Gabi, até participamos de um debate sobre o tema, que acabou descambando prum papo brabo de Deus, que fez a gente se entreolhar, gargalhar pra dentro e sair de banda, porque tivemos a impressão de que o próximo passo do debate seria a entoação histérica de hinos religiosos. Na ocasião, fiquei com a sensação de que, se para ser feliz eu deveria ter uma religião -- e como o debate propunha uma coisa ou outra, ser feliz ou ter razão --, optei por ter razão e me tornei uma cínica. Cética, digo. Por muito tempo, tive inveja das pessoas que tinham religião, pois pra mim elas tinham o pré-requisito que eu não tinha para ser feliz, a tal da fé.

Foi então que passei por uma fase triste, mas triste de não ver mais a menor graça nas coisas, na vida e nas pessoas, e aí eu fiquei muito doente. Tão doente que precisei tomar vários remédios que me mantinham viva artificialmente, e artificialmente me faziam acordar, dormir e ter vontade de comer ou escovar os dentes; no auge da doença, eu tive de visitar, várias vezes por semana, um médico especialista em gente que perdeu o brilho do olhar. Ele conversava comigo, embora eu não tivesse nada de novo pra falar, balançava a cabeça como se tivesse entendido tudo o que eu não falei e fazia anotações. Esse médico, por quem eu acabei me apaixonando quando os remédios começaram a fazer efeito, me lembra muito do Heitor do livro.

Talvez por isso "A viagem" tenha me emocionado tanto. A busca pela felicidade é um caminho singular, que não pode ser padronizado nem repetido, em caso de sucesso, por outras pessoas. Eu não faço desse caminho meu objetivo, pois o maior dos erros é acreditar que a felicidade seja uma meta. Mas, fazendo um retrospecto de meus tropeços por essa trilha, percebo que cheguei, quase que intuitivamente, às mesmas conclusões de Heitor. Que a felicidade é hoje, e não amanhã; que ela chega de surpresa e está nas pequenas coisas; que não está atrelada às coisas materiais, mas as comparações materiais que fazemos nos afastam dela, e que aquela baboseira de não ter tudo que amo, mas amar tudo que tenho talvez faça algum sentido; que há uma relação profunda entre a felicidade e o amor que temos pelas pessoas próximas e por outras que, mesmo sem saber nosso nome, são gratas por um trabalho realmente útil que gostamos de fazer.

Eu tive um médico como o Heitor. E, agora que li o livro, entendo porque fui apaixonada por ele: uma pessoa que sai de sua própria casca e se interessa pelo bem-estar de outra é, de verdade, cativante.