Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

domingo, setembro 17, 2006

Antipatia aérea

Embora eu seja uma criatura extremamente sociável, a ponto de ser incompatível com namorado ciumento, sou dotada de uma inexplicável antipatia aérea. Trocando em miúdos, a única coisa relacionada a viagens aéreas que realmente me apavora é a desconfortável possibilidade de algum estranho resolver puxar conversa comigo. Eu não su-por-to. Talvez seja minha forma de manifestar pânico de voar; talvez seja minha forma de lidar (mal) com o pânico dos outros; mas bem provavelmente é o que ocorre com 11 em cada 10 poodles & afins de madame: eles se sentem bem entre humanos, seus iguais, mas agem muito mal em contato com seus semelhantes, os outros cães, que eles não reconhecem mais como semelhantes e sim como... bichos... ou sabe-se lá o quê. Definitivamente, os poodles & afins não se vêem babando e correndo com uma bolinha na boca, e sentem-se ultrajados com a possibilidade de um dia agir como um canino. Coisa nojenta que eles sabem que não são.

Pois acho que comigo é justo isso que acontece. Embora eu seja humana, não me sinto à vontade num lugar tão cheio de humanos nervosos com o atraso, nervosos com as condições climáticas, nervosos com a agenda, nervosos porque não vão conseguir esticar as pernas na poltrona, nervosos porque avistaram um bebê três fileiras à frente e temem que o bebê chore. Sobretudo, não me sinto bem por perto de humanos que não obedecem regras básicas de segurança e não desligam o celular nem com o comissário o cutucando insistentemente e dizendo "senhor, o avião precisa decolar, senhor, desligue o celular, senhor, por favor coopere.". Eu não me sinto esse tipo de humano, não me sinto bem entre esse tipo de humanos e, assim, me identifico totalmente com os poodles bem tosados e de unhas pintadas, que ficam tão deslocados num par-cão cheio de labradores mastigadores de coco que chega a dar dó. No duro, eu sou como um cachorro com um sério problema de auto-imagem.


Em aviões, não converso nem com comissários de bordo. Não tenho curiosidade de conhecer a aeronave, não pergunto pra que lado fica o sanitário mais próximo e, mesmo que queira saber, não pergunto nem quanto tempo falta pra chegada, nem se aquele barulho estranho foi uma explosão da turbina, nem que filme será exibido durante o vôo. Se a informação não estiver escrita, eu desisto. Se for um vôo de mais de uma hora, então, meu pavor é tanto que exige o consumo de um tarja preta com qualquer coisa alcoólica forte nos primeiros minutos, pois, se eu consigo dormir antes de o cara ao lado puxar assunto, me considero salva pro resto da viagem, que é o período mais crítico, quando as pessoas puxam assunto com as outras por puro medo de o avião cair.

Uma vez, numa viagem pra Salvador, meu vizinho de assento perguntou o nome do livro que eu lia e eu, idiota, respondi a verdade: “O demônio do meio dia”. Embora o livro seja um tratado sobre a depressão e nada tenha a ver com o antagonista de Cristo, isso me rendeu uma pregação religiosa de 90 minutos, durante as quais eu tentei todas as formas possíveis de se interromper uma conversa indesejada – do laconismo carrancudo à simulação de morte súbita, passando pelo MP3-player a um volume audível do solo e idas sucessivas ao banheiro –, mas o maldito servo do senhor não me deixou em paz até o desembarque. Quando levantamos, eu me adiantei dois passos e disse pro maluco, dedo em riste: Nem pense em me seguir! E ele foi atrás de mim, falando alto -- pra todo mundo ouvir e decidir quem era o maluco ali -- sobre como o sete-peles estava presente na vida das pessoas sem Jesus no coração.

A despeito disso tudo, uma vez conheci um cara legal num avião. Corroborando minhas suspeitas de que esse estresse de viagem aérea tem a ver com minha suscetibilidade ao público neurótico da classe econômica, nessa única vez que conversei no avião, o fiz numa primeira classe (da qual só usufruí porque a companhia aérea já tinha lotado a classe econômica). O cara ao meu lado, um alemãozinho de terno e gravata, tentou não rir de mim, mas se apiedou de minha burrice e me ajudou a armar o DVD-player individual que cada passageiro daquelas poltronas de couro sinistras tem diante de si. Ele viu que eu não ia perguntar como aquilo funcionava, e por isso ficou na dúvida sobre que língua exótica deveria tentar falar comigo, então arriscou umas cinco, pelo menos até eu perguntar se ele sabia falar inglês, que inglês estava fine pra mim, e aí ele morreu de rir. Então nós conversamos por nove horas seguidas. Foi isso. Apesar da antipatia aérea, tenho nove horas de conversa furada no meu curriculum.


Seria nove um número cabalístico?