Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

domingo, outubro 01, 2006

Palavras pequenas

Meu pequeno exercício de felicidade (associar amigos a uma palavra que sintetizasse meu amor por eles) durou mais do que eu esperava. Brincar de associação é uma delícia, e eu adorava fazer isso com meus alunos de inglês.

A idéia de brincar com associação de coisa-palavra em sala de aula, contudo, não foi minha. Eu tive um professor de educação artística na escola que fez uma brincadeira dessas com a turma na primeira aula da primeira série do (antigo) segundo grau. Meu colégio era uma espécie de máfia, de forma que era raro ter aluno novo. Porém, naquele ano, havia alguns novatos na sala, entre os quais um cara barbado. Foi um choque pra mim, com cabeça ainda de oitava série e corpitcho de quarta, ver uma homem barbado na minha turma. Perguntei a idade dele, e ele levou séculos me desprezando antes de responder: "Dezoito". O dezoitão arrumou logo uma carteira pra quicar na parede ao fundo da sala e lá ficou, mascando seu chiclete anti-náusea, isolado de nós, pirralhos. [Eu tenho vontade de reencontrar esse cara, mas nem o nome dele eu sei. Acho que ele não durou nem dois meses no Anglo Americano.]

A turma era pequena, tinha uns 15 alunos: doze que se conheciam desde os nove anos de idade, e os outros: uma moça da roça, um baiano e o dezoitão. O objetivo da brincadeira de associação era, obviamente, integrar os 12 (donos do pedaço) aos outros, antes que eles cancelassem a matrícula (que era, obviamente, algo que não nos incomodaria, enquanto donos do pedaço e crianças, que criança é bicho ruim com os da própria espécie). Então o professor sorteou nomes e pediu-nos que escolhêssemos uma palavra ou fizéssemos um desenho para definir nosso colega. A Wal me tirou e tentou desenhar um passarinho, mas eu entendi que aquilo era claramente um galináceo, e rolou um certo estresse na ocasião. O dezoitão tirou a roceira, que era toda casta e menina-moça, do tipo que só sai de casa pra escola ou missa, e escolheu pra ela a palavra "luxúria".

Sério: nunca uma palavra foi tão bem escolhida para um ser humano em toda a história da humanidade. O cara entendeu, instantaneamente, que aquela santa do pau oco era lasciva da cabeça aos pés. E eu pude confirmar isso anos mais tarde, quando ela escravizou um amigo meu através de um extraordinário sexo selvagem (não há outra explicação!), e depois comeu seu pobre coraçãozinho de galinha no xinxim.

Agora, veja você: um cara barbado te diz, aos 14 anos, que você é pura luxúria. E você acredita. Não vai ter sexo que dê conta do apetite dessa pessoa! Às vezes fico tentando imaginar que palavra o dezoitão teria escolhido pra mim. Eu estava muito impressionada com ele naquele dia e nos dias que se seguiram (talvez fosse um indício não detectado de tesão), e teria certamente ficado sugestionada com qualquer rótulo que ele me desse. Talvez ele dissesse: "fedelha", e isso geraria em mim o mais profundo desprezo por aquele troglodita. Talvez ele dissesse: "febre", "borboleta" ou qualquer coisa nonsense. E aí, eu certamente me apaixonaria por ele. Possivelmente, eu teria abandonado a escola por causa de uma gravidez não planejada, feito teatro e filosofia e estaria, até hoje, vendendo coco e sanduíche natural na praia, como a Narjara Turetta.

Jamais desprezem o poder de uma palavrinha. Palavras mudam o curso de vida das pessoas a todo instante.