Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Depois de Finados

Não gosto desse feriado de Finados: minha má formação católica incompleta me enche de culpa por planejar viagens prolongadas justo quando os cemitérios de todo o país recebem hordas de parentes com suas lágrimas e flores. Não acho que esta conjuntivite seja o fruto psicossomático de alguma culpa, até porque já viajei horrores e fui a praias estupendas em todos os feriados de Finados de que posso me lembrar, e em nenhum deles minha latente auto-flagelação cristã me impediu de esquecer completamente dos mortos celebrados enquanto eu me bronzeava ou enchia a cara.

Este ano, porém, foi atípico. No sábado, minha mãe liga à tarde e pergunta: "Você lembra do primo fulano?" Nã. "Pois é, acabo de voltar do enterro dele." E passou a descrever como tinha sido a encomenda do corpo, linda como os amores, quando um ímpeto de auto-preservação me impeliu a interrompê-la:
- Mãe, fico feliz que a cerimônia tenha sido tão bonita, mas podemos falar sobre isso outra hora? Até porque eu preciso de um tempo pra lembrar quem era o primo fulano.
- Ele dormiu na casa de sua avó algumas vezes.
- Ahn. Coitado.
- ...
Sentindo que ela não queria que o assunto acabasse tão logo, continuei:
- Morreu de quê, o pobre?
- Não sei. Ele era velhinho já.
- Você viajou 3 horas de carro pra ir a um enterro e não descobriu como o cara morreu?
- Eu não ia perguntar isso pras minhas primas, estavam todas muito abaladas. E elas gostavam tanto de mamãe, choraram tanto quando me viram, bla bla bla.
- ...
Deixei o assunto se esgotar, apesar do roaming milionário que eu estava pagando. Estava claro que o morto chorado em questão não era o primo, e sim minha vó. A gente perde uma ou duas pessoas realmente importantes na vida e passa a vida inteira aproveitando a morte alheia pra chorar a saudade daqueles que nos fazem falta de verdade.

***

Café da manhã de segunda, pós Finados. Meus pais contam que no sábado, um primo de meus primos morreu atropelado. E que uma tia minha sofreu um acidente de carro no domingo:
- E agora ela passa bem?, perguntei sem dar margem à desgraça.
- Não sabemos ainda. Ela sente muitas dores.
- ...
Não quis prolongar o assunto, portanto fiz alguns segundos de silêncio e voltei minha atenção ao suco de laranja que meu pai tinha acabado de espremer e misturar com alguma fruta não identificada no liquidificador.
- Batido com o quê?, perguntei, referindo-me ao suco.
- Não sei ao certo. Aparentemente, bateu num poste ou árvore e capotou.
- Ahn.
Não achei que seria conveniente repetir a pergunta, até porque não era assim tão importante saber que fruta líquida eu estava tomando, já que quase todas elas têm a mesma pontuação vigilante-pesística. De meu olho, vinham pontadas lancinantes que pareciam o prenúncio da erupção de alguma espécie de gremling, parasitos espaciais de incubação bulbar com o sórdido plano de dominar a Terra. Suspirei profundamente enquanto levava o lencinho ao olho, na tentativa de conter a invasão alienígena sobre meu café da manhã, ao que meu pai perguntou:
- Dói?
Pensei em dizer a verdade, só dói quando eu respiro, mas apenas disse:
- Vou sobreviver.

Depois de um feriado de Finados desses, sobreviver tornou-se uma meta e tal.