Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, novembro 08, 2006

A Mesa Telefônica

Por uma dessas razões que até a razão desconhece, ou simplesmente porque no serviço público nada faz sentido, a colocaram na mesa telefônica de seu setor. Pela reação de horror dos colegas ao descobrir que sua função, doravante, seria atender o telefone de reclamações -- aquele que é divulgado no RJTV --, ela logo entendeu que ser telefonista, ao contrário do que parece, não seria a coisa mais fácil do mundo. E em dois dias entendeu porque a antiga telefonista, que acabara de se aposentar depois de 30 anos no serviço, era tida como uma pessoa rabugenta e de temperamento descontrolado. No terceiro dia, aliás, parou de julgar mal os colegas que se fingiam de mortos quando um dos dois telefones tocava enquanto o outro estava em uso: atender aqueles telefones exigia mais controle emocional que escalar o Everest, domar tigre asiático e atravessar a Linha Amarela de ré sob fogo cruzado sem bater em carro algum. Tudo ao mesmo tempo.

Na primeira semana, tudo foi descoberta e ela achou ótimo poder ajudar o público -- pessoas como ela mesma, afinal. Na segunda semana, começou a perder a identificação com parte do público, mais especificamente com pessoas que ligavam dizendo:

- Meu bem, não sei-si-cê pode me ajudar, mas por acaso teria o telefone da SUIPA?
- Ó, não sei se é aí, mas como este é o quinto telefone que me dão, vai ter que ser aí...
- Aqui quem está falando é o segundo sub-sargento do III XYZ (ou outra sigla qualquer), e eu queria fazer uma reclamação... Ah, quer dizer que isso agora não é com vocês?!? Qual seu nome, CPF e identidade, heim? O prefeito da cidade vai adorar receber um dossiê sobre isso!
- Como assim, Muriqui não é Rio de Janeiro? Muriqui é Rio de Janeiro!!! Como assim, esse serviço é municipal? Muriqui é um municípo, sim, minha filha, acorda pra cuspir! E o estado de Muriqui é Rio de Janeiro, e vocês vão ter que me ajudar, sim! Ah, deixa o Lula saber que os incompetente daí, que eu pago com meu imposto suado, tão só na coçação de saco em vez de trabaiá!

Na terceira semana, pediu autorização à chefe para mandar um, em cada seis contribuintes desaforados, à merda. Embora parecesse um pleito justo, a autorização não foi concedida, o que fez com que ela se viciasse em chocolates e café, o equivalente comestível do grito de "VAI SE FUDEEEEEERRRRR!!!". Na quarta semana, passou a atender com sotaque de baiana, para ter, na criação, caracterização e consistência da personagem, ao menos algum estímulo intelectual. A personagem baiana, talvez por influência da própria história de vida de sua criadora, era muito cordial e solícita: passava tempo demais com cada contribuinte ao telefone, o que acabava chamando a atenção dos colegas de repartição que, vez por outra, tinham de se fingir de mortos pra não atender as ligações que gritavam na segunda linha. Então, na quinta semana, incorporou a gaúcha que, por uma distração freqüente (as pessoas se distraem muito ao telefone, enquanto riscam setas no papel), se tornava paulista e carioca na mesma ligação. E o contribuinte perguntava:
- Nossa, que estranho o seu sotaque! De onde você é, afinal?
- A-di-vi-nhe! -- a baiana sempre voltava pra lhe salvar com sua natural simpatia.

Mas o jogo estava ficando arriscado, então desenvolveu um método para cansar o contribuinte antes que ele fizesse o contrário:

- Você ligou para 3395-2190, Centro de Controle de Zoonoses do Município do Rio de Janeiro, Fulana de tal, matrícula tal falando, bom dia!
- Quem? Onde? Ih, desculpe... acho que foi engano.

E depois de 34 telefones batidos na cara; 576 telefones de outros serviços nada-que-ver informados; 720 reclamações registradas; três elogios; uma cantada; e duas ameças de morte, 90 dias se passaram. E porque sempre há um dia depois do outro, ela voltou a trabalhar no que gosta.

Ainda bem.


PS: Este é um conto ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera infelicidade.

PS2: Embora este seja um conto ficcional, o telefone do CCZ do MUNICÍPIO, PORRA! do Rio de Janeiro está correto.