Canelite
Nunca esteve em meus planos sofrer algum tipo de lesão músculo-esquelética correndo, mas, como toda hipocondríaca que se preze, eu sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Foi mais cedo do que eu imaginava: no terceiro quilômetro de um treino de doze, no último sábado, saí da pista claudicando como uma potranca falida pro turfe. Ao me ver em estado tão esquelético terminal, meu querido professor de corrida de rua, o Carlinhos, tocou um terror geral, dizendo tudo que uma pessoa impressionável hipocondríaca precisa ouvir nessas horas: "Pode ser fratura por estresse!" Peguei a bike e voei prum hospital ortopédico tudo-em-um, e saí de lá com receita de antiinflamatório e remédio pro estômago, RX, ultra-sonografia (não era nada!) e a primeira de doze sessões de fisioterapia e acupuntura. Voltei pra casa pedalando, pois não tá morto quem pedala. Cheguei a pensar que era frescura minha, mas foi só esfriar um pouquinho que a dor na canela voltou a me maltratar, como se eu tivesse levado um coice.
***
Hoje, no trabalho, contei pra Rita de minha dor-poltergeist sem causa conhecida na canela. Ela, que além de corredora é veterinária, portanto opina melhor sobre manqueira do que qualquer médico do Copa D'Or, me veio com esta:
- É canelite.- Ha!
- Tô falando sério: todo mundo que corre tem isso. É canelite.
- Conta outra. Canela nem é uma parte do corpo reconhecida pela ciência. Como eu poderia ter "canelite"?
- Dói no meio da canela?- Dói.
- Tem um ovo ali, em cima do osso?
- Tem.
- Então é canelite. Pergunta pro fulano, que corre. E pro beltrano. Aliás, foi o beltrano que me ensinou o que é canelite, e da primeira vez que ele me falou disso, eu fiz que nem você: "conta outra!"; mas depois de rodar em todos os médicos e ouvir deles que não é nada, cheguei à conclusão que esses caras não sabem o que é canelite, quando, na verdade, é óbvio: uma dor absolutamente real e palpável, bem localizada no meio da canela, no alto do osso, acompanhada de um "ovo" sem hematoma. Só dói quando a gente corre. Ou quando se palpa o ovo na canela. (e pôs-se a expôr sua teoria patofisiológica pra essa dor)
- Meu Deus, é isso mesmo: eu tenho canelite! Qual é o prognóstico? Eu vou ficar boa? Você ficou boa?- Bom, quem corre, vai ter uma canelite de vez em quando. É tão certo quanto a morte e os impostos. Os malucos cagam pra isso e continuam correndo, apesar da dor. Os normais, como eu, param uma semana ou duas, a dor pára, depois volta, e assim vai.
Ou seja: se eu quiser correr, vou ter que assumir que vou ter canelite de vez em quando, e pronto. Um dia, talvez, eu posso até passar a gostar da dor. E pode ser que haja um dia em que a falta da dor me faça sentir vazia e desamparada. Por ora, no entanto, nada me tira essa sensação concreta de que tomei um coice no meio da canela e não percebi. Estou tentando me lembrar qual foi o último cavalo com quem conversei. Todos os muares são suspeitos. Parei de dar bom dia por enquanto, que quem dá bom dia a cavalo fala muito. E pode tomar uns coices.
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Está na hora d'a Medicina se render à sabedoria popular e começar a aceitar os diagnósticos de espinhela caída, lepra canina, sistema nelvoso, canelite e obrocotoma (tumor esquisitóide de natureza desconhecida em órgão não identificado). Pomada Minancora nessa cambada de doença safada, que nem nome científico tem!
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