Linger girl
Não era sua intenção entrar naquela loja. Talvez tenha sido subliminarmente induzida por alguma propaganda em lata de leite ou entrelinha de jornal, mas o fato é que, enquanto terminava de prestar contas com o chefe pelo celular, ela entrou naquela lojinha no Centro da Cidade.
Tudo ali lhe parecia familiar: roupas idênticas a umas que teve, um pingente como o que seu pai lhe dera (e ela passou anos achando que era um brilhante, até descobrir que era vidro e se quebrou), sapatos e bolsas como as que usou na faculdade até acabar. Desconfiadíssima, perguntou se aquilo ali era um brechó, pois estava assombrada de ver como o estoque da loja parecia o acervo dum museu de sua própria história natural. A vendedora negou, claro, mas que loucura a dela! A loja tinha acabado de abrir e ela era a primeira pessoa a entrar. Deu mais uma olhada ao redor e viu um porta-retrato igualzinho ao que ela uma vez fez num workshop de mosaico. E adivinhem se o cachorrinho na foto não era (ou podia perfeitamente ser) seu beagle bicolor, foragido há 20 anos! "Este cachorro aqui da foto... você saberia me dizer se está vivo e aonde?", perguntou quase trêmula à vendedora, que só sorriu, sem jeito, dizendo que aquela era simplesmente uma foto recortada de uma revista qualquer. Ah, ela não tinha como saber.
Desconcertada por ter encontrado numa simples butique de rua vários sentimentos e sensações em que há tempos não esbarrava, vasculhou as araras atrás de uma boa desculpa pra entrar na cabine e, enfim, agir como uma pessoa normal, e não uma psicótica que reconhece o cachorro do mostruário. Para seu choque e horror viu pendurado, entre um cabide e outro, um vestido de tafetá com mangas balofas e saia balafonê. Sem brindadeira: era i-gual-zi-nho ao que foi obrigada a usar em seu aniversário de 15 anos. Irritada com aquele eterno retorno todo, arrancou o vestido da arara e vestiu-o com fúria na cabine (só não pôde fechar o zíper, porque ela tinha engordado uns 15kg de seus 15 anos pra cá). Sua imagem magrela no espelho a olhava com ironia, mãozinhas abusadas na cintura:
- E aí? Você não vai mudar não, é?
- Escuta aqui, sua fedelha: eu mudei, tá! Mudei muito! Iiih, nem vou perder meu tempo com você, porque eu mudei tanto, mas tanto!... que nem entro... nesta merrrrrrda desse vestido cretino... que eu vou picar em pedacinhos, só pra fazer sua cara pilantra sumir da minha frente!
- Ó, fala baixo, senão a moça ali fora vai achar que você tá louca. E deve 'tar, né? Pra não querer mudar! Pra ficar aí, toda congelada e parada no tempo, fazendo as merdas de sempre, insistindo nos mesmos erros... (e revirou os olhos, requebrando os quadris displicentemente por sua parte da cabine).
Mas aquilo era demais: seu alter ego adolescente estava a lhe dar lições! O pior é que ela sabia o porquê. Há 20 anos não se via tão de perto, mas em muitos aspectos era exatamente a mesma. Sem mais dizer, ficou de costas pra pirralha do espelho, pra não lhe dar na cara até sangrar, arrancou o vestido e foi ao caixa pagar seus pecados. Pagou em dez vezes sem juros, lógico.
Chegando em casa, juntou o tafetá a algumas fotos antigas e ao brilhante partido, cortou uma mecha do próprio cabelo, encharcou tudo no Anaïs Anaïs mofado do armário e ateou fogo naquilo que, àquele momento, representava sua pior inimiga: a menina perdida que se recusa a virar uma mulher de verdade, do tipo que perdoa o pai, perdoa a mãe, manda os bofes que a engambelam à puta que los parió e vai viver sua vida sem ficar de quiquiqui e nhenhenhém, que quem faz fuim-fuim pelos cantos é rato, e não gente. E de rato, pra ela, já bastava seu signo no horóscopo chinês.
Tudo ali lhe parecia familiar: roupas idênticas a umas que teve, um pingente como o que seu pai lhe dera (e ela passou anos achando que era um brilhante, até descobrir que era vidro e se quebrou), sapatos e bolsas como as que usou na faculdade até acabar. Desconfiadíssima, perguntou se aquilo ali era um brechó, pois estava assombrada de ver como o estoque da loja parecia o acervo dum museu de sua própria história natural. A vendedora negou, claro, mas que loucura a dela! A loja tinha acabado de abrir e ela era a primeira pessoa a entrar. Deu mais uma olhada ao redor e viu um porta-retrato igualzinho ao que ela uma vez fez num workshop de mosaico. E adivinhem se o cachorrinho na foto não era (ou podia perfeitamente ser) seu beagle bicolor, foragido há 20 anos! "Este cachorro aqui da foto... você saberia me dizer se está vivo e aonde?", perguntou quase trêmula à vendedora, que só sorriu, sem jeito, dizendo que aquela era simplesmente uma foto recortada de uma revista qualquer. Ah, ela não tinha como saber.
Desconcertada por ter encontrado numa simples butique de rua vários sentimentos e sensações em que há tempos não esbarrava, vasculhou as araras atrás de uma boa desculpa pra entrar na cabine e, enfim, agir como uma pessoa normal, e não uma psicótica que reconhece o cachorro do mostruário. Para seu choque e horror viu pendurado, entre um cabide e outro, um vestido de tafetá com mangas balofas e saia balafonê. Sem brindadeira: era i-gual-zi-nho ao que foi obrigada a usar em seu aniversário de 15 anos. Irritada com aquele eterno retorno todo, arrancou o vestido da arara e vestiu-o com fúria na cabine (só não pôde fechar o zíper, porque ela tinha engordado uns 15kg de seus 15 anos pra cá). Sua imagem magrela no espelho a olhava com ironia, mãozinhas abusadas na cintura:
- E aí? Você não vai mudar não, é?
- Escuta aqui, sua fedelha: eu mudei, tá! Mudei muito! Iiih, nem vou perder meu tempo com você, porque eu mudei tanto, mas tanto!... que nem entro... nesta merrrrrrda desse vestido cretino... que eu vou picar em pedacinhos, só pra fazer sua cara pilantra sumir da minha frente!
- Ó, fala baixo, senão a moça ali fora vai achar que você tá louca. E deve 'tar, né? Pra não querer mudar! Pra ficar aí, toda congelada e parada no tempo, fazendo as merdas de sempre, insistindo nos mesmos erros... (e revirou os olhos, requebrando os quadris displicentemente por sua parte da cabine).
Mas aquilo era demais: seu alter ego adolescente estava a lhe dar lições! O pior é que ela sabia o porquê. Há 20 anos não se via tão de perto, mas em muitos aspectos era exatamente a mesma. Sem mais dizer, ficou de costas pra pirralha do espelho, pra não lhe dar na cara até sangrar, arrancou o vestido e foi ao caixa pagar seus pecados. Pagou em dez vezes sem juros, lógico.
Chegando em casa, juntou o tafetá a algumas fotos antigas e ao brilhante partido, cortou uma mecha do próprio cabelo, encharcou tudo no Anaïs Anaïs mofado do armário e ateou fogo naquilo que, àquele momento, representava sua pior inimiga: a menina perdida que se recusa a virar uma mulher de verdade, do tipo que perdoa o pai, perdoa a mãe, manda os bofes que a engambelam à puta que los parió e vai viver sua vida sem ficar de quiquiqui e nhenhenhém, que quem faz fuim-fuim pelos cantos é rato, e não gente. E de rato, pra ela, já bastava seu signo no horóscopo chinês.
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