Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

segunda-feira, julho 02, 2007

O que é de Adalat?

Descobri um joguinho de carteado feito sob medida pra puxar assunto com gente estranha. No momento, não me ocorre o nome do joguinho, mas é coisa bem bolada, típica de americano: vem numa caixinha vermelha com um baralho, e cada uma das mil e quinhentas cartinhas traz uma pergunta instigante que motiva as pessoas mais lacônicas a manifestarem suas opiniões sobre um determinado assunto, como: O que você perguntaria ao Allmighty se tivesse a oportunidade?

Obviamente, minha resposta a esta pergunta é impublicável, até porque não quero dar mole pro AdSense. No entanto, a lembrança desse joguito me ajudou a atravessar mais este jantar de segunda-feira em famiglia. Depois de ouvir passivamente, pela terceira fucking vez, todas as histórias do final de semana (geralmente eu protesto quando o causo é repetido, mas hoje estava passiva), minha mãe perguntou: "E aí, e você: o que conta de novidade?". Estou cheia de novidades que não tenho condições de compartilhar com a minha mãe, porque por mais que eu seja velha o bastante pra lhe dizer tremendos horrores, as mães nunca são velhas o bastante pra ouvir. Foi então que me ocorreu uma pergunta maluca, instigatória & mudatória de assunto: "Vocês se lembram daquele cachorrinho que apareceu lá em Miguel quando a vovó começou a tomar remédio pra pressão? O Adalat? Pois eu estive pensando... o que é de Adalat?..."

Aí aconteceu uma verdadeira revolução em nosso jantar de segunda: minha mãe e meu pai tentaram se situar no tempo e no espaço, tentaram lembrar dos cães que vieram antes e depois do Adalat -- Azambuja, Jipe, Chumbinho, Petisco e Fuscão -- e eu ia dizendo que sentia saudades de todos, que eram todos bonzinhos, ao passo que meus pais, pessoas mais realistas e rancorosas que eu, punham-se a listar as pessoas que foram mordidas, encurraladas, ameaçadas e até desonradas pelos cachorros de minha avó -- gente famosa, gente anônima, gente da família e, às vezes, até um ladrão ou outro --, e eu seguia dizendo que eram todos bonzinhos, mas nenhum tão bonzinho quanto o Adalat, coitado, que chegou à vila cheio de sarna e ainda pingando a óleo queimado de mecânica de autos, e na ocasião não tinha pêlo algum, era muito humilde, coitado, mas em poucos meses ficou dourado e vistoso, e depois disso... o que será que aconteceu com o Adalat, mein gott!

Quando um cachorro morre, a gente lembra. Quando um cachorro foge, a gente lembra. Quando um cachorro se suicida, a gente raramente esquece. Mas o Adalat, coitado... ninguém lembra o que aconteceu com ele. A hipertensão da minha avó passou, e ele também. Levantei a suspeita de termos esquecido que ele existia, afinal ele era tão bonzinho e humilde, quase não latia, quase não pedia comida... E ficamos todos pensativos -- o que catalizou o fim do jantar --, tentando buscar, lá no fundo da memória, alguma pista, alguma dica do que teria acontecido com o pobre Adalat. Teria ele sido esquecido no canil, sem água e sem comida, e porque ele não tinha voz nem ousadia pra se queixar de coisa alguma, teria ele morrido à míngua no claustro sem que nos déssemos conta? Mesmo achando isso improvável numa família que gosta tanto de bicho quanto a minha, não pude conter um calafrio me percorrendo a espinha só de imaginar a cena: a gente entrando pé ante pé no cantinho que chamamos de canil -- mas que é só um canto atrás da casa, com portão, onde se guarda o botijão de gás e algumas plantas, e onde prendemos por alguns instantes nossos peludos quando tem visita pentelha com paúra de cachorro --, descobrindo entre as folhas secas aos pés da azaléia, para nosso choque e horror, um esqueletinho canino franzino e humilde com o mesmo sorriso sardônico do Adalat.

Entrei aqui neste quartinho pra dizer que descobri uma forma infalível de encerrar o jantar de segunda-feira, mas, pensando bem, se eu puxasse de novo aquela carta, e se eu tivesse de responder novamente à pergunta "O que você perguntaria pro Cara lá de cima?", eu certamente perguntaria: "O que foi que aconteceu com o pobre do Adalat?". Ou, melhor ainda: "O que foi que eu fiz com o pobre coitado e humildezinho do Adalat?!?"

Não sei como vou dormir agora. Estou intrigadíssima. O jogo do puxa-conversa, saibam antes que o Ministério da Saúde dê o alerta, está absolutamente contra-indicado durante o jantar.