Estratégias militares
Quem conta é meu pai, o avô preferido d'O Cara, meu fodástico sobrinho e afilhado (muito importante dizer sobrinho, porque é fundamental passar essa noção de sangue-do-meu-sangue, que madrinha não quer dizer porra nenhuma além de uma tia com privilégios no momento do batismo que, como todo momento, é apenas efêmero):
Meu pai, um escravinho obediente de seu neto, O Cara, larga o jornal, a escova de dentes ou o que for para atender um pedido -- ou melhor, uma ordem -- de seu único (e talvez pra sempre único) neto, Pedro Augusto.
Um detalhe: agora que ele é um cara grande, com cinco anos e coisa e tal, pega muito mal chamá-lo de Peuguto. É chamá-lo assim, que o moleque chega mesmo a ficar ofendido e enfurecido, e com toda a razão. Tatibitati de cu, afinal, é rola.
Mas voltando ao expediente: Pedro Augusto, O Grande, ordenou que seu avô brincasse com ele. Para isto, despejaram no tapete uma caixa repleta de bonecos de plástico, muitos deles sem pernas ou braços, resquícios naturais das batalhas da infância. E meu sobrinho disse: "Vamos brincar de guerra." Meu pai, que troca de personalidade instantaneamente ao encarnar o papel de avô (perdendo aquela coisa chata de pai e ganhando um coloração mais rosada, um ar mais jovial e até um ligeiro sorriso, coisas que nele, pelo menos do meu ponto de vista, sempre parecem equivocadas), ajuda meu sobrinho a dividir o contingente de bonecos e animais de plástico e, é claro, fica apenas com os brinquedos aleijados, sem cabeça, olho, braço ou perna, ao passo que meu sobrinho, O Cara (tenham sempre isso em mente), fica com todos os brinquedos perfeitos e tinindo de novos, com superpoderes, aparatos eletrônicos e artefatos para voar, correr ou matar o inimigo. E aí, cada um com seu exército, a guerra começa.
No início, a batalha parecia estar extremamente equilibrada: pra cada boneco que meu pai matava de meu sobrinho, lhe morriam vinte. Aparentemente, um dos soldados d'O Cara possuía uma metralhadora nuclear com um potencial de destruição insuperável. O avô, como todo bom escravo, rendeu-se à humilhação da derrota iminente, até que -- e olha que estrategista militar meu pai é -- ele descobriu uma múmia em meio a seu batalhão já quase todo aniquilado. Quando eu digo múmia, eu quero dizer múmia mesmo: um boneco enrolado em trapos, só com os olhos pra fora e nenhum braço ou perna articulável. Não ter braço ou perna articulável, no reino dos brinquedos, é ser menos do que a Susie, menos do que a Barbie, enfim: é ser uma merda completa que não serve pra porra nenhuma. Enquanto isso, a metralhadora nuclear do meu sobrinho ia aniquilando geral o exército avariado do coitado do meu pai, que a essa altura só tinha a múmia e uns dois power rangers sem cabeça ou braço.
Foi então que O Avô (com maiúsculas, por favor, pra fazer alusão aO Cara) lembrou: "A múmia não morre porque já está morta. E tem mais: porque ela não escova os dentes e nem lava os pés há cinco mil anos, tem um mau hálito fatal e um chulé devastador." Impressionado com os superpoderes da múmia, O Cara assistiu, pasmo, impassível e incrédulo, seu exército vencedor ser exterminado pelos dois ou três bonecos semi-destruídos de meu pai, todos liderados pela imortal múmia mega-ultra-power fodástica. Tão logo a guerra acabou, meu sobrinho tratou de dar sumiço na múmia, que meu pai, O Avô, nunca mais viu. Não dava pra disputar batalhas contra um soldado como aquele, e ele, O Cara, precisava de tempo para pensar no que fazer para superar a estratégia egiptóloga militar de seu famigerado e inventivo avô.
Pois o avô voltou pro Rio, a múmia e o sobrinho ficaram em Salvador, e hoje, pelo telefone, Cara e Avô conversaram pelo telefone:
- Encomendei uma múmia enorme pra mim, disse meu pai.
- Ah, é? (e meu sobrinho cochicha alguma coisa com mermão, seu pai)
- É, insistiu o Avô. E essa vai ser tão grande, e vai ter tanto bafo e tanto chulé que ninguém vai poder contra ela.
Meu sobrinho volta da consulta aos universitários:
- Pois eu vou atacar sua múmia com água. E ela vai apodrecer.
- Ah, não! O senhor está muito enganado: esta minha múmia terá uma capa e um guarda-chuva.
O Cara consulta novamente os universitários. Mermão, engenheiro bélico formado pelo Instituto Militar de Engenharia, dá umas dicas, e meu sobrinho volta:
- Mas eu vou molhar por baixo da capa e do guarda-chuva.
Ouço as risadas do Avô e a ligação logo se encerra. Aparentemente, essa próxima batalha será sinistra, mas eu tenho a terna impressão de que o inimigo múmia se deixará molhar, liquefazer, humilhar ou sucumbir propositalmente para não demolir o ego d'Esse Cara Grande, o Pedro Augusto I. Primeiro na linhagem das crianças incríveis que meu coração adulto aprendeu a amar.
Meu pai, um escravinho obediente de seu neto, O Cara, larga o jornal, a escova de dentes ou o que for para atender um pedido -- ou melhor, uma ordem -- de seu único (e talvez pra sempre único) neto, Pedro Augusto.
Um detalhe: agora que ele é um cara grande, com cinco anos e coisa e tal, pega muito mal chamá-lo de Peuguto. É chamá-lo assim, que o moleque chega mesmo a ficar ofendido e enfurecido, e com toda a razão. Tatibitati de cu, afinal, é rola.
Mas voltando ao expediente: Pedro Augusto, O Grande, ordenou que seu avô brincasse com ele. Para isto, despejaram no tapete uma caixa repleta de bonecos de plástico, muitos deles sem pernas ou braços, resquícios naturais das batalhas da infância. E meu sobrinho disse: "Vamos brincar de guerra." Meu pai, que troca de personalidade instantaneamente ao encarnar o papel de avô (perdendo aquela coisa chata de pai e ganhando um coloração mais rosada, um ar mais jovial e até um ligeiro sorriso, coisas que nele, pelo menos do meu ponto de vista, sempre parecem equivocadas), ajuda meu sobrinho a dividir o contingente de bonecos e animais de plástico e, é claro, fica apenas com os brinquedos aleijados, sem cabeça, olho, braço ou perna, ao passo que meu sobrinho, O Cara (tenham sempre isso em mente), fica com todos os brinquedos perfeitos e tinindo de novos, com superpoderes, aparatos eletrônicos e artefatos para voar, correr ou matar o inimigo. E aí, cada um com seu exército, a guerra começa.
No início, a batalha parecia estar extremamente equilibrada: pra cada boneco que meu pai matava de meu sobrinho, lhe morriam vinte. Aparentemente, um dos soldados d'O Cara possuía uma metralhadora nuclear com um potencial de destruição insuperável. O avô, como todo bom escravo, rendeu-se à humilhação da derrota iminente, até que -- e olha que estrategista militar meu pai é -- ele descobriu uma múmia em meio a seu batalhão já quase todo aniquilado. Quando eu digo múmia, eu quero dizer múmia mesmo: um boneco enrolado em trapos, só com os olhos pra fora e nenhum braço ou perna articulável. Não ter braço ou perna articulável, no reino dos brinquedos, é ser menos do que a Susie, menos do que a Barbie, enfim: é ser uma merda completa que não serve pra porra nenhuma. Enquanto isso, a metralhadora nuclear do meu sobrinho ia aniquilando geral o exército avariado do coitado do meu pai, que a essa altura só tinha a múmia e uns dois power rangers sem cabeça ou braço.
Foi então que O Avô (com maiúsculas, por favor, pra fazer alusão aO Cara) lembrou: "A múmia não morre porque já está morta. E tem mais: porque ela não escova os dentes e nem lava os pés há cinco mil anos, tem um mau hálito fatal e um chulé devastador." Impressionado com os superpoderes da múmia, O Cara assistiu, pasmo, impassível e incrédulo, seu exército vencedor ser exterminado pelos dois ou três bonecos semi-destruídos de meu pai, todos liderados pela imortal múmia mega-ultra-power fodástica. Tão logo a guerra acabou, meu sobrinho tratou de dar sumiço na múmia, que meu pai, O Avô, nunca mais viu. Não dava pra disputar batalhas contra um soldado como aquele, e ele, O Cara, precisava de tempo para pensar no que fazer para superar a estratégia egiptóloga militar de seu famigerado e inventivo avô.
Pois o avô voltou pro Rio, a múmia e o sobrinho ficaram em Salvador, e hoje, pelo telefone, Cara e Avô conversaram pelo telefone:
- Encomendei uma múmia enorme pra mim, disse meu pai.
- Ah, é? (e meu sobrinho cochicha alguma coisa com mermão, seu pai)
- É, insistiu o Avô. E essa vai ser tão grande, e vai ter tanto bafo e tanto chulé que ninguém vai poder contra ela.
Meu sobrinho volta da consulta aos universitários:
- Pois eu vou atacar sua múmia com água. E ela vai apodrecer.
- Ah, não! O senhor está muito enganado: esta minha múmia terá uma capa e um guarda-chuva.
O Cara consulta novamente os universitários. Mermão, engenheiro bélico formado pelo Instituto Militar de Engenharia, dá umas dicas, e meu sobrinho volta:
- Mas eu vou molhar por baixo da capa e do guarda-chuva.
Ouço as risadas do Avô e a ligação logo se encerra. Aparentemente, essa próxima batalha será sinistra, mas eu tenho a terna impressão de que o inimigo múmia se deixará molhar, liquefazer, humilhar ou sucumbir propositalmente para não demolir o ego d'Esse Cara Grande, o Pedro Augusto I. Primeiro na linhagem das crianças incríveis que meu coração adulto aprendeu a amar.
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