Crianças roubadas
Quando foi abandonada pelo vigarista cretino de seu marido, que a largou no meio da roça com sete filhos e uma meia dúzia de porcos e galinhas, é possível que minha vó, Dona Izolina, tenha até derramado umas lágrimas (no tapete atrás da porta). Ninguém a viu chorando, claro, pois ela era uma típica chorona do tipo 3. Minha mãe era uma fedelha de 3 anos na ocasião, e tinha um irmãozinho mais novo e um mais velho, uma escadinha de um ano entre eles. Foi meu avô dobrar a esquina no breu, que vovó juntou a criançada e horrorizou geral: "Se o pai de vocês voltar aqui, vocês tratem de correr pra dentro de casa e pra baixo da minha saia, que ele vem é pra roubar 'ocês de mim." E virou-se pros 3 fedelhinhos, ameaçadora: "E vocês, que são pequenos, ele 'garra numa braçada e carrega com ele no cavalo duma vez só!"
Não preciso dizer que o vigarista cretino do meu avô virou uma espécie de bicho papão que atravessou gerações. Minha mãe passou a infância inteira com medo de ser roubada; minha avó, para sobreviver, cuidava da fazenda dum figurão e dava pensão para uns eventuais caixeiros viajantes. Era só ouvir os cascos dum cavalo na estrada de chão, que a molecada toda corria pra dentro de casa, se escondia debaixo da cama e, dizem as más línguas, até faziam xixi e outras coisas na calça, de tanto medo de que o cavalo estivesse trazendo o bicho papão, esse grande ladrão de criança.
Quando saiu da roça pra cidade grande, minha avó teve de distribuir os sete filhos -- até encontrar escola pra todos, um emprego e uma casa -- pelos seus parentes que já estavam no Rio. Minha mãe, que a essa altura já era uma mocinha de cinco anos, ficou uns tempos com seu padrinho, enquanto Madrinha Yolanda lhe costurava o enxoval -- camisolas, saias e blusas -- para o ingresso no colégio interno. Padrinho punha mamãe no colo e dizia: "Minha filhinha, o que vamos fazer hoje?" E mamãe chorava. "Mas, minha filhinha, o que foi, por que você chora tanto?". E minha mãe chorava era ainda mais! Até que um dia, entre soluços e catarros, ela conseguiu explicar o motivo de tanta lacrimosidade: ela era filha só da mãe dela, e não dele. Por uns dias, dadas as evidências lingüísticas do roubo de criança e pelo sumiço inexplicável de vovó, minha infanta mãe ficou desconfiadíssima de que Padrinho a tinha roubado de sua progenitora para todo o sempre. O diabo, todos sabem, tem várias caras.
É claro que, de minha parte, eu também sempre tive um certo medinho de ser roubada da minha mãe. Fui criada pra ter medo do velho do saco, da bruxa das balas envenenadas e das multidões estabanadas que separam crianças de suas mães para sempre. Era um medo vago, até que um dia, de fato, eu me perdi da minha mãe. Ou melhor, minha mãe me perdeu, porque nenhuma mãe ajuizada, que foi criada com medo de ser roubada, desgruda o olho de sua filha de quatro anos em plena feira hippie de Ipanema, num domingo de sol e na década de setenta!
Antes de ficar histérica -- e olha que o limiar de histeria de uma criança é super baixo --, eu olhei em volta e, dentre as centenas de pernas que via, nenhuma delas era a da minha mãe (embora todas usassem boca-de-sino ou mini-saia). Aí eu fiquei histérica, e logo um policial veio me acudir. Eu ainda não tinha medo de polícia, mas pelas perguntas do cara -- "Como é a sua mãe? Qual o nome dela? Onde você mora? --, eu sabia que ele não ia me ajudar era porra nenhuma. Uma criança de quatro anos não tem condições de fazer um retrato falado com geo-referenciamento, caraças! E eu chorava, gritava, tentava soltar minha mãozinha da mãozona do guarda, esperneei e dei tanto escândalo, que minha mãe acabou me encontrando no meio do clarão que eu abri na multidão com meu espetáculo de histeria. Parecia que o guarda estava me roubando, e as pessoas começavam a dizer: "Coitada da menina, deixa ela ir!". Aí o guarda me soltou, e eu voei no colo da mãe que corria na minha direção; nem vi se a cara dela era de medo ou alívio, mas a abracei com raiva, muita raiva d'ela ter me perdido. E logo dormi, que é muito cansativo ser roubada da mãe.
Não preciso dizer que o vigarista cretino do meu avô virou uma espécie de bicho papão que atravessou gerações. Minha mãe passou a infância inteira com medo de ser roubada; minha avó, para sobreviver, cuidava da fazenda dum figurão e dava pensão para uns eventuais caixeiros viajantes. Era só ouvir os cascos dum cavalo na estrada de chão, que a molecada toda corria pra dentro de casa, se escondia debaixo da cama e, dizem as más línguas, até faziam xixi e outras coisas na calça, de tanto medo de que o cavalo estivesse trazendo o bicho papão, esse grande ladrão de criança.
Quando saiu da roça pra cidade grande, minha avó teve de distribuir os sete filhos -- até encontrar escola pra todos, um emprego e uma casa -- pelos seus parentes que já estavam no Rio. Minha mãe, que a essa altura já era uma mocinha de cinco anos, ficou uns tempos com seu padrinho, enquanto Madrinha Yolanda lhe costurava o enxoval -- camisolas, saias e blusas -- para o ingresso no colégio interno. Padrinho punha mamãe no colo e dizia: "Minha filhinha, o que vamos fazer hoje?" E mamãe chorava. "Mas, minha filhinha, o que foi, por que você chora tanto?". E minha mãe chorava era ainda mais! Até que um dia, entre soluços e catarros, ela conseguiu explicar o motivo de tanta lacrimosidade: ela era filha só da mãe dela, e não dele. Por uns dias, dadas as evidências lingüísticas do roubo de criança e pelo sumiço inexplicável de vovó, minha infanta mãe ficou desconfiadíssima de que Padrinho a tinha roubado de sua progenitora para todo o sempre. O diabo, todos sabem, tem várias caras.
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É claro que, de minha parte, eu também sempre tive um certo medinho de ser roubada da minha mãe. Fui criada pra ter medo do velho do saco, da bruxa das balas envenenadas e das multidões estabanadas que separam crianças de suas mães para sempre. Era um medo vago, até que um dia, de fato, eu me perdi da minha mãe. Ou melhor, minha mãe me perdeu, porque nenhuma mãe ajuizada, que foi criada com medo de ser roubada, desgruda o olho de sua filha de quatro anos em plena feira hippie de Ipanema, num domingo de sol e na década de setenta!
Antes de ficar histérica -- e olha que o limiar de histeria de uma criança é super baixo --, eu olhei em volta e, dentre as centenas de pernas que via, nenhuma delas era a da minha mãe (embora todas usassem boca-de-sino ou mini-saia). Aí eu fiquei histérica, e logo um policial veio me acudir. Eu ainda não tinha medo de polícia, mas pelas perguntas do cara -- "Como é a sua mãe? Qual o nome dela? Onde você mora? --, eu sabia que ele não ia me ajudar era porra nenhuma. Uma criança de quatro anos não tem condições de fazer um retrato falado com geo-referenciamento, caraças! E eu chorava, gritava, tentava soltar minha mãozinha da mãozona do guarda, esperneei e dei tanto escândalo, que minha mãe acabou me encontrando no meio do clarão que eu abri na multidão com meu espetáculo de histeria. Parecia que o guarda estava me roubando, e as pessoas começavam a dizer: "Coitada da menina, deixa ela ir!". Aí o guarda me soltou, e eu voei no colo da mãe que corria na minha direção; nem vi se a cara dela era de medo ou alívio, mas a abracei com raiva, muita raiva d'ela ter me perdido. E logo dormi, que é muito cansativo ser roubada da mãe.
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