A radiografia de um passarinho
Sentia um mal-estar físico danado na sala de espera do setor de radiologia da São José, que atende tanto pacientes internos quanto externos, e os parcos minutos que me prendiam ali, longe da cama onde passei os últimos cinco dias convalescendo, pareciam uma verdadeira eternidade. Olhei feio pro atendente que me fez ficar de pé enquanto digitava os dados dos documentos que eu acabara de lhe entregar, e quando ele me flagrou contrariada, mostrou sua expressão mais aflita e convidou-me imediatamente a esperar sentada. Sentei para provar que estava realmente sentindo-me mal demais para ficar em pé à toa, mas o centro do universo logo passou de mim a uma maca que saía da radiologia carregando uma pessoa tão coberta e tão cravejada de tubos e sondas, que era mesmo impossível distingüir se o paciente era homem ou mulher, jovem ou idoso. O enfermeiro que empurrava a maca cuidadosamente tinha fones nos ouvidos e um tom bonito de pele que só as pessoas saudáveis têm.
Acompanhei o drama de algumas pessoas queridas que viveram a angústia de estar entre a vida e a morte na São José, e é impossível esquecer a vontade que senti de doar um pouco da minha saúde e vitalidade àqueles que nada têm, ou têm, segundo as pessoas mais simplórias, tudo o que se pode ter na vida, amor, dinheiro e uma carreira bem sucedida, menos saúde. Foi na São José que eu compreendi o sentido do desapego, pois quando é você quem está numa maca daquelas, ainda que com os melhores médicos que o dinheiro pode pagar, não adianta sonhar, que a saúde do enfermeiro que te empurra ouvindo músicas alegres não se transmite por osmose. A vida é a coisa mais frágil que há.
Fiquei ainda mais frágil quando precisei pôr um avental daqueles que tiram nossa dignidade de gente vestida para fazer as radiografias que o pneumo pediu. O técnico me sentou num banco gelado, apoiou meu queixo contra uma chapa que mais parece um alvo e, segurando minha cabeça com as duas mãos e a suavidade de um anjo, me pôs na posição certa e pediu que eu não me mexesse. Eu não poderia me mexer nem se quisesse, pois de uma forma muito estranha, lembrei de uma coisa que aconteceu comigo quando eu tinha uns seis ou sete anos.
Ao avistar aquele passarinho junto ao pé de ingá, podia jurar que ele tinha caído do ninho, pois me parecia pequeno, embora completamente emplumado. Ele estava com as penas arrepiadas e o bico enterrado no peito como se tivesse frio, e como não se assustou com a minha presença, fiquei comovida e o levei para casa, carregando-o cuidadosamente nas mãos em concha. Eu não tinha noção que ele estava se preparando para morrer, e nos meus sonhos de menina eu iria alimentá-lo, dar-lhe casa e brinquedos, e ele seria então meu amigo. E seríamos amigos por muitos e muitos anos, talvez para sempre, e ele sempre me seria grato por lhe ter tirado do alcance das crianças e gatos maus, que poderiam devorá-lo numa só bocada. Forrei uma caixa de sapatos com minha toalha de rosto, enchi minhas panelinhas de água, miolo de pão e arroz, e cobri-o com a coberta vermelha da Susi, já que ele parecia ter frio. De tempos em tempos, voltava à caixa e o envolvia sob a coberta, com a delicadeza de quem pressente que mesmo a mão pequena de uma menina pode ser fatal para um passarinho. Não era nem noite ainda quando voltei à caixa e o encontrei morto. Tinha a marca de meus dedos em suas penas, que pareciam ter murchado só onde eu o havia tocado por cima da pequena coberta de boneca.
Agora o técnico do raio X, ajeitando-me sobre o alvo onde a presa deve esperar paralisada, deixava as marcas de seus dedos delicados em meus cabelos desgrenhados de cama. Apesar da suavidade de seu toque, as mãos em concha sobre a minha cabeça, exatamente como eu toquei aquele passarinho, tive a forte sensação de que iria morrer.
Não que eu tenha planos de morrer agora, e acho até muito difícil que uma sinusite dê cabo de minha vida, mas basta uma gripe forte para me lembrar que a vida é frágil, e que dela não levamos nada além desses pequenos rastros de amor que não se apagam jamais.
Acompanhei o drama de algumas pessoas queridas que viveram a angústia de estar entre a vida e a morte na São José, e é impossível esquecer a vontade que senti de doar um pouco da minha saúde e vitalidade àqueles que nada têm, ou têm, segundo as pessoas mais simplórias, tudo o que se pode ter na vida, amor, dinheiro e uma carreira bem sucedida, menos saúde. Foi na São José que eu compreendi o sentido do desapego, pois quando é você quem está numa maca daquelas, ainda que com os melhores médicos que o dinheiro pode pagar, não adianta sonhar, que a saúde do enfermeiro que te empurra ouvindo músicas alegres não se transmite por osmose. A vida é a coisa mais frágil que há.
Fiquei ainda mais frágil quando precisei pôr um avental daqueles que tiram nossa dignidade de gente vestida para fazer as radiografias que o pneumo pediu. O técnico me sentou num banco gelado, apoiou meu queixo contra uma chapa que mais parece um alvo e, segurando minha cabeça com as duas mãos e a suavidade de um anjo, me pôs na posição certa e pediu que eu não me mexesse. Eu não poderia me mexer nem se quisesse, pois de uma forma muito estranha, lembrei de uma coisa que aconteceu comigo quando eu tinha uns seis ou sete anos.
Ao avistar aquele passarinho junto ao pé de ingá, podia jurar que ele tinha caído do ninho, pois me parecia pequeno, embora completamente emplumado. Ele estava com as penas arrepiadas e o bico enterrado no peito como se tivesse frio, e como não se assustou com a minha presença, fiquei comovida e o levei para casa, carregando-o cuidadosamente nas mãos em concha. Eu não tinha noção que ele estava se preparando para morrer, e nos meus sonhos de menina eu iria alimentá-lo, dar-lhe casa e brinquedos, e ele seria então meu amigo. E seríamos amigos por muitos e muitos anos, talvez para sempre, e ele sempre me seria grato por lhe ter tirado do alcance das crianças e gatos maus, que poderiam devorá-lo numa só bocada. Forrei uma caixa de sapatos com minha toalha de rosto, enchi minhas panelinhas de água, miolo de pão e arroz, e cobri-o com a coberta vermelha da Susi, já que ele parecia ter frio. De tempos em tempos, voltava à caixa e o envolvia sob a coberta, com a delicadeza de quem pressente que mesmo a mão pequena de uma menina pode ser fatal para um passarinho. Não era nem noite ainda quando voltei à caixa e o encontrei morto. Tinha a marca de meus dedos em suas penas, que pareciam ter murchado só onde eu o havia tocado por cima da pequena coberta de boneca.
Agora o técnico do raio X, ajeitando-me sobre o alvo onde a presa deve esperar paralisada, deixava as marcas de seus dedos delicados em meus cabelos desgrenhados de cama. Apesar da suavidade de seu toque, as mãos em concha sobre a minha cabeça, exatamente como eu toquei aquele passarinho, tive a forte sensação de que iria morrer.
Não que eu tenha planos de morrer agora, e acho até muito difícil que uma sinusite dê cabo de minha vida, mas basta uma gripe forte para me lembrar que a vida é frágil, e que dela não levamos nada além desses pequenos rastros de amor que não se apagam jamais.
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