Liberdade é um canivete, um pecorino e uma garrafa quente de Chianti.
O conceito de liberdade está intimamente associado à transgressão. A idéia é essa: ninguém pode ser completamente livre se obedece a todas as regras e convenções. Minha musa teen, Alanis Morissette, recomenda, por exemplo, que se ande pelado pela sala e que se ponha mais comida na boca do que o cavidade bucal comporta. Ela recomenda, aliás, que se enfie o pé na boca -- por que não?!? A qualquer momento. Seria surpreendente se, durante uma reunião pentelha com pessoas pentelhas do seu trabalho, você tirasse seu lindo sapatinho, desse uma cheirada básica no pé pra ver se ele está em condições de ser mastigado, e TCHOC: enfiasse o dedão do pé na boca diante de uma platéia estupefata. Isto sim, seria liberdade!
Casseta & Planeta (ou talvez o Planeta Diário) venderam, por muitos anos, camisetas dizendo que liberdade é passar a mão na bunda do guarda. Concordo plenamente, como não? E se o guarda der aquele pulinho de susto e uma olhadinha indignada pra trás, melhor ainda: mais liberdade ainda!
Acho que o momento de minha vida em que fui mais livre foi num dia de verão na Toscana, em que eu já acordei dizendo que não ia pentear o cabelo e foda-se. Se meu cabelo já é uma bosta penteado, despentado é ó-do-borogodó, de forma que não penteá-lo é um grito de independência sem tamanho. Eu tinha acabado de comprar um sutiã, peça que não uso por injustificabilidade anatômica, porque os italianos reparam se você está de sutiã ou não (independente do seu volume mamário), e eu particularmente acho isso muito inconveniente; mas nesse dia, em que eu acordei com o ovo virado, disse que não ia usar porcaria de sutiã nenhuma. E entrei nos prédios sacro-medievais assim, de camiseta de alcinha, sem sutiã, sem lenço nem documento. Estava pronta pra dizer pro primeiro guardião da moral e dos bons costumes que me abordasse que não capisco mesmo, nem vem que não tem, cadê meus direitos humanos de ser estrangeira onde eu bem entender? Naquele dia, pode-se dizer, eu estava com o diabo no corpo. E foi um dia maravilhoso!!!
De repente, de prédio medieval em prédio medieval, conheci o melhor sabor do mundo: queijo pecorino. Provei todos os tipos numa lojinha medieval, que dava aos queijos um sabor ainda mais maturado, e resolvi que só ia comer pecorino na minha vida daquele momento em diante. "Não", disse minha companhia, "vamos nos reservar pro jantar." A gente tinha se programado pra jantar em algum lugar cuja rota já estava milimetricamente calculada no GPS do carro, e aquele planejamento todo, mais a idéia de que eu teria de pentear meu cabelo pra ser admitida como cliente num restaurante, me deu um nervoso medonho. Implorei de joelhos: "Por tudo que me é mais sagrado: é muito importante que hoje eu só coma pecorino. E beba vinho, porque cai muito bem. Se eu comer qualquer outra coisa, sinto que vou morrer pra sempre." Como se fosse possível morrer por uns instantes. E então -- chantagem feita, chantagem bem sucedida --, compramos o maior pecorino que eu já vi em toda a minha vida, duas garrafas de Chianti e fomos pra praça da matriz da cidadezinha para ver o pôr-do-sol. Não tínhamos abridor, faca, guardanapo, nada, mas eu tinha um canivete suíço que me acompanha desde os 19 anos e, com ele, cortamos o pecorino, abrimos as garrafas sem o auxílio dos dentes, bebemos às gargaladas (e gargalhadas) enquanto comíamos o queijo mais gorduroso do mundo e limpávamos a mão na calça, no cabelo e na cara um do outro, sem nunca deixar de falar mal (em português de baixíssimo calão) das pessoas que passavam e nos olhavam com espanto.
Hoje eu saí da ginástica e passei no supermercado pra comprar um pecorino: 30 g = 4 pontos. Isso não seria nada, se 30 g de pecorino não tivessem quase que o mesmo tamanho da unha do dedão do meu pé. Talvez seja por isso que a Alanis recomendou chupar o dedão do pé: equivale a um pecorino, em termos de liberdade, mas é zero ponto. Dependendo do estado do pé, talvez até menos.
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