Vox ubaldi, vox populi.
Taí, agora senti firmeza
João Ubaldo Ribeiro
Vou contar muito resumidamente a história, apesar de ela ter saído em todos os jornais, porque já se passou mais de uma semana e nossa memória não é muito bem-falada. Uma senhora de 67 anos, d. Maria Dora dos Santos Arbex, ao ser atacada por um assaltante, abriu a bolsa, sacou um revólver e deu um tiro na mão do agressor. Desejo manifestar minha modesta opinião sobre o assunto e parte do que, pelo menos até o momento, ele rendeu.
Minha opinião, a julgar pelo que tenho lido, deverá ser considerada perniciosa, retrógrada, reacionária, insensível, censurável, quiçá burra e certamente ignorante, no ver de muita gente. Fico chateado com isso, porque sempre me achei progressista e meu pai se esforçou tanto para que eu tivesse uma formação razoável. Mas não posso fazer nada, porque, como disse, pretendo opinar sobre esse assunto e – digito estas palavras com os dedos trêmulos – a verdade é que estou com d. Maria Dora e não abro. E, desta forma, talvez esteja sujeito a ir em cana na companhia dela, pois todo o episódio demonstrou como é longo e rigoroso o braço da lei, que não irá poupar-me quiçá de uma alegação de cumplicidade (sim, porque estou disposto a abrigar ilegalmente d. Maria Dora em minha casa, caso ela precise foragir-se devido a seu grave delito) ou várias outras malfeitorias que a ordem pública defina.
Todas as desculpas que poderiam ser alegadas em nosso favor são inaceitáveis não só pela lei como pelo pensamento politicamente correto. Começa pelo fato de que d. Maria Dora realmente não podia estar portando uma arma. É proibido por lei, porque o Estado detém o monopólio da violência e não admite que ele seja violado, como sabe, por exemplo, qualquer cidadão do Rio de Janeiro e São Paulo – e, neste último, a polícia foi muitas vezes alvo de bandidos, mas é que os bandidos não foram bem informados. No mais, todo mundo sabe que a lei é justa, mais do que justa, porque o Estado protege a nós todos e ninguém aqui pode queixar-se de falta de segurança. Não só é lei como é realidade. O Estado protege inclusive os fracos e ninguém aqui precisa proteger a si mesmo. Ponto contra nós, d. Dora. Mal comecei e já tenho certeza de que a gente vai se dar mal nesta, de ponta a ponta.
Em segundo lugar, admitamos também, está inteiramente errado a senhora ferir o assaltante. O certo, todo mundo sabe, seria a senhora ser ferida ou morta pelo assaltante. É esse o procedimento adequado, adotado por centenas de bons brasileiros, todos os dias. E a senhora vai e fere o assaltante, sem perceber o egoísmo e a falta de espírito público de seu gesto. Se o assaltante, Deus a livre e guarde sempre, tivesse matado a senhora, seria mais uma oportunidade para lamentarmos a violência urbana, fazermos camisetas com seu nome e abraçarmos o Parque do Flamengo, ou qualquer coisa assim.
Não esqueçamos ainda que a posição politicamente correta é a favor do assaltante. Digo mais, d. Maria Dora, acho que a senhora vai ficar surpresa com isto, mas é verdade: assaltante é esquerda, assaltado é direita. Assim de primeira, sei que é difícil de acreditar, mas, considerando que, se perguntada o que quer dizer esquerda e o que quer dizer direita, a maioria dos auto-intitulados intelectuais de esquerda não saberá o que responder por ignorância mesmo e gaguejará abundantemente, acho que a senhora entenderá com mais facilidade que assaltante é esquerda e assaltado é direita.
Como a senhora sabe, de uns tempos para cá, ninguém é culpado de nada. Considerar alguém culpado de alguma coisa é horrivelmente incorreto, desde o momento glorioso em que a psicanálise e a sociologia invadiram os botequins. Agora todo mundo é vítima, ora das circunstâncias sociais, ora dos traumas psíquicos. Ninguém é mau-caráter, mentiroso, preguiçoso, violento, vigarista etc., é todo mundo vítima de alguma coisa. Culpar alguém, vamos ter de reconhecer, d. Maria Dora, não está com nada. Quer dizer, culpar a senhora pode, porque a senhora não teve a famosa origem miserável, causa principal da delinqüência, segundo as versões botecais das referidas ciências. Eu também não, isso é horrível e venho até escondendo o fato de que, por exemplo, nunca passei fome em minha vida, pois está ficando feio para o Novo Intelectual, o que lá seja isso.
Segundo também soube pelos jornais, o pobre assaltante vivia praticando sua arriscada e ingrata profissão há muito tempo por ali mesmo e costumava, sem que a polícia fizesse nada, achacar ou assaltar os moradores da área, o que teria levado d. Maria Dora a portar a arma. Não houve compreensão por parte desses moradores, como não há compreensão por parte dos moradores de todas as grandes cidades. Deviam cotizar-se para garantir o sustento do infeliz. Deviam oferecer-se como voluntários para o assalto do dia, a fim de que ele não se sentisse um inútil, sem exercer sua profissão e, portanto, socialmente excluído.
Soube finalmente que, para a prisão da d. Maria Dora, mobilizaram-se oito viaturas policiais. Pouco, talvez, mas acabou se revelando suficiente. Não sei qual será o destino judicial dela, mas certamente o do assaltante, se houver, será bastante menos severo. E, além disso, de mau exemplo para baixo, d. Maria Dora já vem sendo desancada pelos especialistas. Portanto, d. Maria Dora, nosso caso está perdido, a lei, a ordem e a segurança estão garantidas. Com a nossa prisão e a de indivíduos que pensarem como nós, a tranqüilidade geral será assegurada. D. Maria Dora, com todo o respeito, mas somos praticamente do mesmo tope etário e podemos dispensar certas frescuras. A senhora já pensou, como eu já pensei e já fiz, em mandar esse pessoal todo à merda? Não resolve, até porque a maior parte já está lá, mas consola um pouco.
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