Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Meu amigo, o dragão.

Quando criança, eu era tão desesperada por um bichinho de estimação que vivia trocando meus dentes de leite pela promessa de um peludo. Um dia, vários dentes de leite depois, minha mãe finalmente aceitou me dar meu primeiro cachorro. Por falta de experiência e pela urgência infantil que impede qualquer pesquisa e enlouquece qualquer mãe, levamos o animal doméstico mais próximo de uma besta-fera que havia à venda: um Pequinês. É claro que minha mamma não sabia que Pequinês não serve pra criança. Pra falar a verdade, e verdade seja dita, ela nem sabia que aquela bolinha de pêlos iria, um dia, se tornar um cão, porque ele mais parecia um floquinho de pelúcia. E assim, saímos da loja (de peixes, canários, plantas e xaxins) felizes da vida com o cachorro mais agressivo que eu conheci em toda a minha vida. Eu o batizei de Pêgo, antes mesmo d'ele Pêgar o pé do primeiro membro da família e de absolutamente todas as pessoas de nosso convívio.

Hoje, sempre que quero me sentir culpada, fico tentando entender o que transformou aquele animal em um tigre, mas muitos colegas especialistas em comportamento animal já tentaram me convencer que o forte do Pequinês nunca foi a sociabilidade; tanto, que desapareceu "das prateleiras" das pet shops, junto com os xaxins. Talvez tenha contribuído (pra transformação da bolinha de pêlos em dragão) o terror que o veterinário tocava, dizendo que o Pequinês não podia se irritar, senão seus olhos seriam projetados pra fora das órbitas. Ora, você diz isso pra um adulto ou uma pessoa que possa se assustar com a visão de um cão sem olhos, mas 3 crianças pequenas dariam todos os seus dentes de leite pela chance de ver esse espetáculo de camarote. O resultado é que nós 3, fedelhos, vivíamos atormentando o pobre cão pra ver se seus olhos lhe pulariam da cara, mas isso nunca aconteceu. Eu só vi meu primeiro paciente canino com olho pra fora da órbita no Hospital de Pequenos Animais de minha faculdade, e concluí que, quando criança, eu esperava algo realmente mais incrível. Não é nada demais: não vale mesmo à pena atiçar um cachorro só por causa disso. Melhor coisa é deixar o olhinho lá, no lugarzinho dele, em paz.

Pêgo era a pessoa da casa que mais cartas recebia: toda semana chegava uma do Ministério da Saúde nos intimando a apresentar os atestados de vacinação do cão e deixá-lo em observação por tantos dias, porque tinha agredido fulano de tal, em nossa quadra. Quando chegava uma carta, eu corria pra ver quem tinha sido mordido dessa vez: de alguns eu sabia, de outros não, porque nos revezávamos na tarefa de passear com o dragão. Ele, aliás, sempre descia pra dissolver impasses nas nossas brincadeiras de criança. O Pêgo era uma espécie de arma branca marrom, sobretudo pro meu irmão, que tinha mais impasses do que eu por ser menino. Meninas são naturalmente mais diplomáticas, e meninos mais belicosos.

Embora eu assuma minha parcela de culpa na construção daquele monstro, peço sempre pro meu advogado de defesa lembrar que eu era muito pequena; e crianças muito pequenas não podem manipular cães sem a supervisão dos pais, porque o resultado será invariavelmente uma maldade contra o cão e um risco pra criança. Eu fui mordida tantas vezes, e quase todas no rosto, que é um milagre eu não ter um nariz de plástico, por exemplo. Meu irmão, uma vez, brincando de carrinho perto do Pêgo, quase perdeu a orelha, que ficou literalmente pendurada por um fiapo de pele. Foram dezenas de vacinas na barriga só na nossa casa. E eu sempre implorava de joelhos e em meio a um rio de lágrimas pra minha mãe reconsiderar quando ela, farta de tantos acidentes e idas a hospitais, ameaçava se desfazer do cão.

Um dia, não houve jeito: ela pôs um anúncio no jornal doando nosso Pequinês. Pedi à fada do dente que não deixasse ninguém ler o anúncio, mas um homem leu e respondeu. Minha mãe conversou com o moço pelo telefone, explicou que o Pêgo era um ótimo cão de companhia para pessoas mais velhas e sem filhos, e lá fomos nós todos dar nosso melhor amigo ao carrasco de meia idade. Pêgo nem desconfiava que aquele passeio de carro a uma quadra estranha seria o fim de seu convívio conosco. Eu chorei por todo o trajeto, implorei e jurei que ia morrer, mas minha mãe ainda estava curando a orelha dependurada de meu irmão e permanecia inflexível. O novo dono do Pêgo abriu só uma fresta da porta, por onde nos estendeu -- por cortesia, engano ou ironia -- um saco de castanhas do Pará e arrastou, para dentro de sua casa suja e escura, nosso cachorro pela coleira. A idéia do escambo, numa hora dessas, me parecia surreal, e até hoje eu tenho verdadeiro horror a castanha do Pará por causa disso. À medida que o homem puxava Pêgo pra dentro, o cão enfiava suas garrinhas no chão e tentava fazer o caminho inverso, em nossa direção. Não me recordo de ter visto cena mais triste envolvendo um cachorro, em toda a minha vida. Voltei pra casa doente de tristeza e com ódio dos meus pais, mas hoje, pra ser bem realista, sei que as únicas soluções seriam a recolocação do bichinho noutra casa com menos riscos de acidentes ou a eutanásia. Nos EUA, a agressividade é a segunda maior causa de eutanásia em cães, só perdendo pro câncer.

Minha alegria voltou um mês depois, quando o homem sujo e devorador de castanhas do Pará ligou pra minha mãe perguntando se podíamos ficar com o Pêgo por alguns dias, porque ele ia viajar. Ficamos com ele por mais dois anos, porque o homem das cavernas nunca mais voltou, graças à fada do dente.

Afinal, a maldita fada ouvia. Mas só às vezes.