Ovelha branca
Por uma dessas mazelas da genética, em minha geração, pintaram 3 loiros de olhos claros na família: minha irmã e dois primos. Num primeiro olhar pela vitrine da maternidade, todo mundo pensava que eram filhos do leiteiro. Minha irmã sofria toda vez que alguma visita olhava pra mim e dizia à minha mãe: "Nossa, sua filha é a sua cara! Mas quem é essa russinha aqui?" Em segredo, eu e meu irmão lhe dizíamos que ela havia sido encontrada na lixeira. Se fosse hoje, eu acrescentaria: "quase morta". Tenho ouvido isso muito de protetoras.
Cansada de ser torturada pelos irmãos negros, minha loira irmã (dizíamos, em tom de ofensa, que ela parecia uma menina rica) passou uma fase de sua infância tendo manifestações racistas que nos chocavam profundamente, mas era óbvio que nós havíamos criado aquele monstro.
Uma vez, uma turminha de colegas de classe de minha irmãzinha foi me buscar no meio da aula de Educação Moral e Cívica, no ginásio, pra resolver um impasse: minha russa irmã tinha ofendido uma coleguinha negra durante uma partida de handball. Fui lá, pisando firme, mais pra chegar antes do linchamento do que pra torcer o pescoço de minha irmãzinha. Encontrei a professora em estado de choque, a aula de educação física parada, e uma multidão consolando a menina ofendida. Perguntei pra Sam:
- O que houve?
- A Feijão errou o passe de propósito e eu disse: "Só podia ser preta!"
- Peraí: qual o nome da menina?
- Não sei. Todo mundo chama ela de Feijão.
Depois de dar um esporro na minha irmã, fui me desculpar com a Feijão. Sendo eu morena, achei que caberia a mim fazer a retratação familiar.
- Não chore, disse eu. Minha irmã não falou por mal. Ela é meio estúpida mesmo.
Mas a menina chorava tanto, que eu não tinha uma brecha. Falou uma das amiguinhas dela, neta do Brizola:
- Pô, mó sacanagem da Sam. A Feijão nem é preta!..
Fiquei olhando pra menina que concordava com amiga sem parar de chorar: sua pele cor de chocolate e suas maria-chiquinhas alisadas por um genérico do henê rená. As palavras fluiram da minha boca:
- Mas a Feijão é preta, gente... O problema não é esse, e sim a associação da falta à cor da pele.
Eu logo fui cercada por uma multidão enfurecida, que queria comer meu fígado. Sem saber, havia proferido as palavras proibidas: a Feijão não era preta, não podia ser preta, não podia ser rotulada como preta, porque era gente boa. Muito embora feijão -- pelo menos onde eu moro -- seja preto, preto, preto.
Sentindo que o preconceito menos perigoso ali era o da minha infantil e traumatizada irmã, peguei-a pela mão e ordenei que voltasse pra sala de aula sem dar um pio. Dispensei-a de pedir desculpas e descobri, aos 12 anos, que o racismo no Brasil é intenso. E está onde a gente menos espera.
Cansada de ser torturada pelos irmãos negros, minha loira irmã (dizíamos, em tom de ofensa, que ela parecia uma menina rica) passou uma fase de sua infância tendo manifestações racistas que nos chocavam profundamente, mas era óbvio que nós havíamos criado aquele monstro.
Uma vez, uma turminha de colegas de classe de minha irmãzinha foi me buscar no meio da aula de Educação Moral e Cívica, no ginásio, pra resolver um impasse: minha russa irmã tinha ofendido uma coleguinha negra durante uma partida de handball. Fui lá, pisando firme, mais pra chegar antes do linchamento do que pra torcer o pescoço de minha irmãzinha. Encontrei a professora em estado de choque, a aula de educação física parada, e uma multidão consolando a menina ofendida. Perguntei pra Sam:
- O que houve?
- A Feijão errou o passe de propósito e eu disse: "Só podia ser preta!"
- Peraí: qual o nome da menina?
- Não sei. Todo mundo chama ela de Feijão.
Depois de dar um esporro na minha irmã, fui me desculpar com a Feijão. Sendo eu morena, achei que caberia a mim fazer a retratação familiar.
- Não chore, disse eu. Minha irmã não falou por mal. Ela é meio estúpida mesmo.
Mas a menina chorava tanto, que eu não tinha uma brecha. Falou uma das amiguinhas dela, neta do Brizola:
- Pô, mó sacanagem da Sam. A Feijão nem é preta!..
Fiquei olhando pra menina que concordava com amiga sem parar de chorar: sua pele cor de chocolate e suas maria-chiquinhas alisadas por um genérico do henê rená. As palavras fluiram da minha boca:
- Mas a Feijão é preta, gente... O problema não é esse, e sim a associação da falta à cor da pele.
Eu logo fui cercada por uma multidão enfurecida, que queria comer meu fígado. Sem saber, havia proferido as palavras proibidas: a Feijão não era preta, não podia ser preta, não podia ser rotulada como preta, porque era gente boa. Muito embora feijão -- pelo menos onde eu moro -- seja preto, preto, preto.
Sentindo que o preconceito menos perigoso ali era o da minha infantil e traumatizada irmã, peguei-a pela mão e ordenei que voltasse pra sala de aula sem dar um pio. Dispensei-a de pedir desculpas e descobri, aos 12 anos, que o racismo no Brasil é intenso. E está onde a gente menos espera.
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