Contato
Já havia dez anos que estava fora do país e, desde o início, decidiu que seu maior grito de independência seria despistar a família superprotetora. Começou a trocar de telefone a cada 3 meses. Tirou seu nome da lista. Primeiro teve um indentificador de chamadas, mas depois achou mais seguro contratar o serviço de triagem de ligações da companhia telefônica, que obrigava a pessoa que lhe telefonasse a gravar uma mensagem como "Oi, é a mamãe, lembra?", esperar vinte segundos na linha aguardando autorização e pagando DDI, pra depois ouvir a mensagem automática: "Sorry. O usuário não está disponível para atender sua ligação." Deixou claro que ela ditaria as regras dali em diante: eu contato vocês, e não o contrário.
Só ligava quando lhe dava na telha. Geralmente em feriados nacionais, no meio da tarde ou em horários em que as chances de encontrar alguém seriam mínimas. Quando calhava de alguém da famiglia atender, passava 30 minutos falando sobre o tempo e a economia americana, pra finalmente responder como iam as coisas:
- Perdi todo o cabelo, mas já fui virada do avesso e os médicos não encontraram nenhuma doença. Me puseram na psicoterapia. Saio em cinco meses. Estou usando peruca.
- Ó, céus, é o fim do mundo! Isso é muito grave!!! Por que você não volta pro Brasil? Você nunca teve isso aqui, e aqui é tudo mais fácil...
- A ligação vai cair em dois segundos.
- Pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu...
Ou então, depois de meia hora falando sobre a morte de uma modelo brasileira anoréxica que só ficou famosa mundialmente depois de morta:
- O motivo d'eu não ter ligado nos últimos dois meses é que eu deixei meu celular no trabalho.
- E você não foi trabalhar por dois meses?
- Não. Caí da escada e fraturei algumas vértebras. Mas já estou bem.
- Ó meu Deus, ISSO É MUITO GRAVE!!! Você ficou tetraplégica?!? Quem está te dando banho? Quem está cozinhando pra você? Nós vamos aí te buscar já!
- O cartão está acabando. E eu não estou tetraplégica. Estou patinando e tudo.
- Pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu...
Só ligava quando lhe dava na telha. Geralmente em feriados nacionais, no meio da tarde ou em horários em que as chances de encontrar alguém seriam mínimas. Quando calhava de alguém da famiglia atender, passava 30 minutos falando sobre o tempo e a economia americana, pra finalmente responder como iam as coisas:
- Perdi todo o cabelo, mas já fui virada do avesso e os médicos não encontraram nenhuma doença. Me puseram na psicoterapia. Saio em cinco meses. Estou usando peruca.
- Ó, céus, é o fim do mundo! Isso é muito grave!!! Por que você não volta pro Brasil? Você nunca teve isso aqui, e aqui é tudo mais fácil...
- A ligação vai cair em dois segundos.
- Pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu...
Ou então, depois de meia hora falando sobre a morte de uma modelo brasileira anoréxica que só ficou famosa mundialmente depois de morta:
- O motivo d'eu não ter ligado nos últimos dois meses é que eu deixei meu celular no trabalho.
- E você não foi trabalhar por dois meses?
- Não. Caí da escada e fraturei algumas vértebras. Mas já estou bem.
- Ó meu Deus, ISSO É MUITO GRAVE!!! Você ficou tetraplégica?!? Quem está te dando banho? Quem está cozinhando pra você? Nós vamos aí te buscar já!
- O cartão está acabando. E eu não estou tetraplégica. Estou patinando e tudo.
- Pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu...
***
Toda vez que o telefone tocava no meio da tarde ou de um feriado nacional, o ar se tornava irrespiravelmente pesado e todos ficavam tensos naquela família superprotetora normal. Nunca se sabia se do outro lado da linha haveria um inconveniente operador de telemarketing ou uma caçula desgarrada, recém recuperada de um desastre aéreo ou d'um ataque terrorista. Na segunda hipótese, eles sabiam que teriam que passar 30 insustentáveis minutos conversando sobre o tempo, a economia americana e celebridades para conseguir riscar a superfície da muralha que mantinha essa ovelha desgarrada do rebanho. E, de contato errático em contato errático, iam montando um complicado quebra-cabeças pra tentar entender como, quando e por que a ovelhinha construíra essa muralha intransponível em torno de si.
Toda vez que o telefone tocava no meio da tarde ou de um feriado nacional, o ar se tornava irrespiravelmente pesado e todos ficavam tensos naquela família superprotetora normal. Nunca se sabia se do outro lado da linha haveria um inconveniente operador de telemarketing ou uma caçula desgarrada, recém recuperada de um desastre aéreo ou d'um ataque terrorista. Na segunda hipótese, eles sabiam que teriam que passar 30 insustentáveis minutos conversando sobre o tempo, a economia americana e celebridades para conseguir riscar a superfície da muralha que mantinha essa ovelha desgarrada do rebanho. E, de contato errático em contato errático, iam montando um complicado quebra-cabeças pra tentar entender como, quando e por que a ovelhinha construíra essa muralha intransponível em torno de si.
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