Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

domingo, novembro 12, 2006

A palavra com a letra P

Quando o Povo Brasileiro veio morar conosco, o pobrezinho era muito doente, e nada parecia animá-lo. Como era um cachorrinho de rua e eu ainda não tinha chegado a nenhuma conclusão sobre seu caráter, ou sobre a probabilidade d’ele me morder, na hora de me aproximar com a coleira e a guia, eu fazia um carnaval e vendia a idéia do passeio na coleira como a coisa mais fantástica do universo. Era crucial que ele gostasse de passear, mesmo doente, senão ele faria cocô e xixi em casa; e, se fizesse, minha mãe o despejaria. Então, passeamos dez vezes por dia nos primeiros dias, e a cada vez que eu pegava a coleira, repetia o mesmo carnaval e o mesmo convite, com voz de palhaço Carequinha: Vamos no passeeeeeeeeeiô?!?

Como cachorro inteligente que é, o Povo nunca se aliviou em casa e logo entendeu que a palavra “passeio” era a senha para a abertura de um portal que o levaria ao ar livre, gramas frescas e um buquê de outros aromas instigantes. Se alguém chegasse em casa tarde e perguntasse, sobre o cão, "Quando foi o último passeio?", seria obrigatório que houvesse outrem (invariavelmente eu!) de prontidão e tênis para passear com o cão, ainda que ele tivesse acabado de chegar de uma caminhada de duas horas. A simples pronúncia da palavra o agitava de tal modo, que temíamos (eu temia) que seu coração fosse entrar em extra-sístole de agonia. O Povo era incansável para passeio, e isso nos fez abolir essa palavra de nossas conversas. Passamos a nos referir a ela (a palavra proibida, que assanhava o cão rueiro) como “a palavra com a letra P”, expressão que sussurrávamos entre os dentes, assoviando e olhando pro teto, a fim de despistar o cão. Mesmo assim, não houve jeito: ele, metendo aquele focinho cheio de bigode na conversa da gente, logo entendeu que “a palavra com a letra P” era a nova senha para a abertura do portal que o levaria a bla bla bla. Foi assim que tivemos de dar ao Povo um sítio pra chamar de seu, pois um cão incansável para aquela palavra com a letra P, precisa se nãnãnã sozinho. E ele continua se nãnãnando sozinho, e nós continuamos proibidos de pronunciar a palavra com a letra P.

Moral da estória: Nunca ensinem um cão a tiranizar seu dono, pois ele aprende rápido e não esquece jamais.
Moral da estória 2: Nunca acreditem que um veterinário faz em casa, com seus bichos, aquilo que ele ensina aos clientes (ele faz justamente o contrário).
Moral da estória 3: Cães mandam, donos obedecem.
Moral da estória 4: Se você não tem tempo de passear longamente ao menos duas vezes por dia com um cão, reconsidere o desejo imoral de tê-lo em detrimento de sua felicidade.