Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Mesmo doente, o pai é uma fera!

Estava aqui, fechando um trabalho, quando ouço meu pai tendo uma crise de tosse por causa duma sinusite que ele cronificou de teimoso, por automedicação. Ofereço ajuda, ele rosna que não quer nada. Enquanto o sigo pela casa, minha mãe sinaliza com o olhar: "mantenha distância: animal feroz." Pergunto a ele coisas objetivas (está com falta de ar? quando você tosse, sai catarro? a garganta arde? a cabeça dói?), e ele olha pra minha cara por dez segundos (e a carinha dele, coitado, é péssima; pro bichinho ficar assim, é que a coisa tá feia), estende a mão como um guarda-de-trânsito interrompendo o fluxo do meu falatório, dá mais cinco segundos de pausa e, quase sem voz, me paga um esporrinho: "Não fale comigo. Não consigo responder." Tenho vontade de gargalhar, porque só percebo que aquilo é um esporro pelo cenho que ele franze quando está muito zangado. Dou meia volta, mas sei que não vou conseguir dormir enquanto não tentar cuidar desse pitbull dodói marrento. Volto com remedinhos e óleos essenciais de eucalipto e cipreste. E um estetoscópio Welch Allyn Meditron, que funciona tão bem em cavalos, quanto em pais geneticamente selecionados para o combate. Mostro o esteto pra ele ver que eu não vou fazer nenhuma maldade (a gente sempre faz assim com os bichos), peço pra ele só balançar a cabeça dizendo sim-não, e pergunto: "Posso?" Ele faz que sim. Peço-lhe pra respirar de boca aberta, inspirar e expirar longamente, depois peço que a boca fique fechada, como quem não quer nada, pra ver se o último check-up cardiológico dele ainda está valendo. Quando ele pergunta por que estou demorando tanto, me faço de desentendida e declaro: "Pulmões limpos. Agora vamos tratar dessa sinusite."

Obviamente, ele não quer tomar remédio algum. Também não quer ir ao médico agora, porque a esta hora da madrugada só há residentes pré-púberes no plantão das emergências. Ele quer ir ao médico no dia seguinte sem mascarar sintomas. Explico, pacientemente, que rinosoro 3% é só água com sal, e que os inofensivos fluimucil e rinofluimucil não vão curá-lo até o dia seguinte, mas vão permitir que ele durma melhor. Talvez até, quem sabe?, deitado. Como um ser humano deve dormir. Ele aceita, rosnando com o fio de voz que lhe resta. Ainda tento empurrar um Claritin D, mas ele pede pra ler a bula e me empurra a caixa de volta: "Anti-histamínico, eu não tomo." Novamente, tenho vontade de rir, pensando em como seria difícil ter esse tipo de embate verbal com um cachorro de 80 kg: "Vacina eu não tomo, mas de jeito algum! Prefiro morrer de cinomose a ser espetado com essa agulha 25 x 7 e esse líquido gelado".

Faço pra ele uma nebulização com óleo essencial de cipreste e eucalipto. Agora ele consegue respirar pelo nariz e até falar um pouquinho mais. Quando acho que está tudo bem, que ele está bem cobertinho, bem deitadinho-sentado no sofá, na penumbra aconchegante, pergunto se ele não quer ir ao meu médico, que é um pneumo fodaço. E ele, só pra provar que é meu pai, diz: "Não. Se seu médico fosse bom, você não teria todos esses remédios em casa."

E eu juro que podia ter dormido sem essa manifestação mal-humorada híbrida de ingratidão e crítica paterna crônica.