O cão lavrador.
Black aguarda seu segundo jantar: ravioli, churrasco e um monte de outras coisas que ele expurgou às três da manhã da pior forma possível.
Ontem eu resolvi passar um quality time com meu afilhado negão canino, o Black, que sempre se queixa comigo de ter menos compainha humana do que gostaria. Depois de pedir autorização à mamãe-Daisy-dele pro peludo dormir em minha casa, preparei uma mochilinha com comedouro, ração pro jantar e pro café da manhã, escova de dentes e dentifrício para cães (afinal, ninguém suporta dormir com um cachorro bafejando como tigre), e lá fomos nós, felizes da vida, como duas criancinhas de seis anos que vão dormir na casa do amiguinho da escola pela primeira vez na vida. No caminho, fomos cantando músicas temáticas alegres, como "Black Dog", do Led Zep, e "Cara Valente", da Maria Rita, mas tenho pra mim que fez muita falta pro Black não ter um iPod só pra chamar de seu: o cara parecia não entender de onde vinha tanta inspiração para a minha cantoria, e passou a viagem toda, do Jardim Botânico a Botafogo, me olhando meio de lado.
Pro Black dormir em minha casa, que não é só minha, mas também dos meus famigerados pais, minha famiglia (a saber: meus pais) teve de passar por uma espécie de Concílio de Trento que durou um terço do dia: eles precisavam saber se o Black tinha alguma restrição alimentar, como alergia ou intolerância a massa dormida ou churrasco velho, e, sobretudo, se eu estava só levando o canino para uma noitada eventual ou se, na verdade, estava tentando algum movimento esquisito e fortuito-oportunistóide, do tipo "olha que fofura de cachorrinho linducho que eu encontrei ali na lixeira, à beira da morte, sem pai nem mãe, coitado". Gente desconfiada é uma merda. Fica até difícil surpreender ou fazer uma coisa maluca com essa gente que suspeita até da própria sombra, mas também confesso que nos últimos 34 anos eu já encontrei alguns bichinhos fofuchos nas lixeiras da vida e os caras, graças à minha verve dramático-italianística chantagistóide, tiveram uma vida mais digna que a minha.
Então estava o Black me olhando de lado de lá, meus pais me olhando de lado de cá, e os três se olhando de lado, principalmente quando o extra-peludo começou a se coçar nervosamente no meio da cozinha, levantando uma nuvem de pêlos pretos e sujos sobre as panelas fumegantes do jantar, e eu achei que o momento era exatamente oportuno pro meu afilhado e eu tomarmos um bom banho quente, pra todo mundo entrar no clima familiar neurótico-higienista e ficar assim, limpinho e mais à vontade. Depois do banho, fizemos uma escova progressiva aromaterápica, limpamos nossas orelhas e lixamos nossas unhas para impressionar meus pais no jantar. O cheiro do refogado da minha mãe tinha atiçado o instinto selvagem estomacal do meu afilhado Labrador, que, mesmo tendo devorado sua micro-porção de ração em dois pentelhésimos de segundo, continuava inundando nossa copa de saliva canina. À menor mexida de cabeça, ele fazia lindos desenhos gosmentos de baba no chão e nas paredes, o que culminou com o segundo Concílio de Trento do dia, desta vez pra decidir qual das comidas da mesa poderíamos oferecer para acalmar o cão-hóspede sem prejudicar sua saúde ou alterar sua rotina. Na verdade, eu poderia ter decidido isto sozinha -- afinal, fiz cinco anos de faculdade só pra saber que não se pode dar comida caseira pra cachorro impunemente --, mas como ontem eu estava com seis anos de idade, votei efusivamente no ravioli de frango com molho de churrasco e salada de alface, mostarda e chicória, com um fio de azeite extra-extra virgem (aprendi com o Lau). Como meu pai e minha mãe são pessoas rústicas, nascidas e criadas no interior do estado do RJ, adicionamos também um angu velho ao rancho do negão, que as pessoas rústicas sabem melhor que ninguém que angu e osso de galinha não fazem mal a cachorro algum.
O Black se esbaldou no ravioli com azeite e mostarda, mas terminou seu segundo jantar tão antes da gente que ficou arisco e inquieto, roendo o pé da mesa, puxando a toalha e latindo pra me provocar (depois das 22h, meu Deus!), o que culminou com nossa expulsão precoce da área social da casa antes do trigésimo minuto do primeiro tempo. Vi-me obrigada a terminar o jantar no quarto, onde me tranquei com o ridículo canino para evitar que ele destruisse qualquer coisa da casa que não fosse minha. Aliás, chegando ao quarto, num momento sublime de desapego material zen-taoísta (obrigada, Fran!), eu classifiquei rapidamente os itens expostos em dois tipos, para facilitar as coisas entre o Black et moi: isto-aqui-cê-pode-roer (grupo desapegóide um) & isto-aqui-cê-não-pode-roer (grupo apegóide dois). Enquanto eu terminava meu jantar, ele roeu um chinelo, um boné e uma almofada do grupo um, e quando eu o proibí de roer meu pé, ele começou a falar muito alto, com aquela voz grossa de cachorro ridículo, e eu tive de apagar correndo todas as luzes pra gente dormir bem quietinho. Ele caiu feito um pato e levou só 2 minutos pra roncar e roubar todo o meu cobertor, um recorde absoluto entre os machos de todas as espécies com que já me deitei no sentido horizontal não-bíblico (a saber, humanos, felinos, bovinos, eqüinos, suínos e caninos: sim, eu sou muito vivida, muito deitada e muito não-bíblica!).
Às três horas da madrugada fria, o peludo me acordou com um sonoro pum tão pestilento que me revirou o estômago no meio de um lindo sonho dourado: o ravioli, obviamente, havia deixado sérias seqüelas nas últimas quatro horas de seu trânsito intestinal, e eu tive de levá-lo urgentemente à rua para o alívio peristáltico. Fomos -- eu, de pijama e casaco de neve, e ele de capa de chuva; meu estômago embrulhava só de pensar em dormir com um cachorro de 35kg que não usaria papel higiênico nem chuveirinho depois de exorcisar a massa fecal que já se anunciara ameaçadoramente em formato-presságio de flato traumato-dilacerante. Tentei convencê-lo a ficar só no xixi, mas no que eu ia abrindo a boca pra iniciar meu discurso de contenção de divisas, ele começou a dar mil voltinhas em torno do próprio eixo e, ploft, liberou uma jaca podre prematura grande o bastante pra fertilizar todo o sertão nordestino. Putz grila, pensei: como eu vou lavar a bunda do cachorro e usar o secador maxi-turbo em silêncio às 3 e meia da manhã? Eu torcia secretamente pra que a chuva apertasse até haver um dilúvio sem precedentes históricos, e assim, em meio ao caos, nós poderíamos voltar semi-náufragos, nadando de volta à casa, onde meus naturalmente estressados pais ficariam tão aliviados com nosso milagroso retorno que não reclamariam nem um pouco de ouvir o barulho ensurdecedor de um secador de cabelos maxi-mega-ultra-turbo na calada da madrugada. O dilúvio não veio, mas em compensação o sono voltou. Vencida pelo cansaço e pela lógica extremamente óbvia do "o que é um pum pra quem já está todo cagado?", voltei pro meu historicamente higiênico leito com o Black, onde nos deitamos de bunda suja e tudo e roncamos até o dia seguinte, quando a faxineira veio para me redimir e transformar novamente num ser humano digno da matrícula de médica veterinária da Vigilância Sanitária da Cidade do Rio de Janeiro, amém.
Às sete da manhã, acordei com latidos caninos que inicialmente se pareciam com cantos de pássaros raros numa praia deserta das Ilhas Seychelles, mas à medida que meu afilhado negão mastigava meu rosto, eu ia substituindo a fantasia do "só mais cinco minutos nesta ilha" pela dura realidade do "se não descer em cinco minutos, vou te mijar, peidar e cagar todinha". Descemos, ele perseguiu meia dúzia de gatos e gambás, comeu -- num segundo de minha distração com o troco -- metade dos pães franceses que eu levei séculos escolhendo pela temperatura, peso, porte e cor, fez um novo e assustadoramente volumoso cocô, e voltamos pra casa felizes, pra um café da manhã de dois segundos: o tempo que durou a modesta porçãozinha de ração que eu havia separado para ele na véspera. Como eu não conseguia enfiar novamente o animal arisco no banheiro para escovar os dentes comigo, porque afinal ele estava traumatizado com o banho da véspera, pedi pro meu pai ficar de olho na fera enquanto eu tinha três minutos de privacidade na frente de minha pia, e neste interim, pro meu desgoverno, o Black roeu boa parte do meu pai, fez pipi na sala e destruiu um objeto não-neutro do grupo dois.
Lembrei muito do desenho da Lilo & Stitch: a menina vai a um canil municipal para adotar um cachorro e acaba adotando um monstrinho alienígena que nem canídeo era. Eles vivem felizes para sempre, mas ela passa por maus bocados até descobrir que o nível de malcriação dele extrapolava os patamares máximos da normalidade, o que é mais ou menos o que acontece com meu afilhado negão canino.
Depois do xixi e dos gritos do meu pai, eu fiz uma mochilinha pra mim mesma e me mandei de casa, sem nem tomar banho, de pijama e casaco de neve. Devolvi o Black e me adiantei pro trabalho. Sorte que eu sou servidora pública, e como só tem maluco no serviço público, ninguém reparou que eu estava de pijama até as quatro da tarde.
Comentário do meu pai depois d'o Black destruir um objeto não-neutro do grupo dois e demarcar nosso sofá: "Ah, ele é um bichinho lindo! Mas não traz de novo pra casa não, tá bem?". Detesto admitir, mas há certas visitas que só podem entrar na casa da gente em segredo, desde que não roam nada proibido.
Pro Black dormir em minha casa, que não é só minha, mas também dos meus famigerados pais, minha famiglia (a saber: meus pais) teve de passar por uma espécie de Concílio de Trento que durou um terço do dia: eles precisavam saber se o Black tinha alguma restrição alimentar, como alergia ou intolerância a massa dormida ou churrasco velho, e, sobretudo, se eu estava só levando o canino para uma noitada eventual ou se, na verdade, estava tentando algum movimento esquisito e fortuito-oportunistóide, do tipo "olha que fofura de cachorrinho linducho que eu encontrei ali na lixeira, à beira da morte, sem pai nem mãe, coitado". Gente desconfiada é uma merda. Fica até difícil surpreender ou fazer uma coisa maluca com essa gente que suspeita até da própria sombra, mas também confesso que nos últimos 34 anos eu já encontrei alguns bichinhos fofuchos nas lixeiras da vida e os caras, graças à minha verve dramático-italianística chantagistóide, tiveram uma vida mais digna que a minha.
Então estava o Black me olhando de lado de lá, meus pais me olhando de lado de cá, e os três se olhando de lado, principalmente quando o extra-peludo começou a se coçar nervosamente no meio da cozinha, levantando uma nuvem de pêlos pretos e sujos sobre as panelas fumegantes do jantar, e eu achei que o momento era exatamente oportuno pro meu afilhado e eu tomarmos um bom banho quente, pra todo mundo entrar no clima familiar neurótico-higienista e ficar assim, limpinho e mais à vontade. Depois do banho, fizemos uma escova progressiva aromaterápica, limpamos nossas orelhas e lixamos nossas unhas para impressionar meus pais no jantar. O cheiro do refogado da minha mãe tinha atiçado o instinto selvagem estomacal do meu afilhado Labrador, que, mesmo tendo devorado sua micro-porção de ração em dois pentelhésimos de segundo, continuava inundando nossa copa de saliva canina. À menor mexida de cabeça, ele fazia lindos desenhos gosmentos de baba no chão e nas paredes, o que culminou com o segundo Concílio de Trento do dia, desta vez pra decidir qual das comidas da mesa poderíamos oferecer para acalmar o cão-hóspede sem prejudicar sua saúde ou alterar sua rotina. Na verdade, eu poderia ter decidido isto sozinha -- afinal, fiz cinco anos de faculdade só pra saber que não se pode dar comida caseira pra cachorro impunemente --, mas como ontem eu estava com seis anos de idade, votei efusivamente no ravioli de frango com molho de churrasco e salada de alface, mostarda e chicória, com um fio de azeite extra-extra virgem (aprendi com o Lau). Como meu pai e minha mãe são pessoas rústicas, nascidas e criadas no interior do estado do RJ, adicionamos também um angu velho ao rancho do negão, que as pessoas rústicas sabem melhor que ninguém que angu e osso de galinha não fazem mal a cachorro algum.
O Black se esbaldou no ravioli com azeite e mostarda, mas terminou seu segundo jantar tão antes da gente que ficou arisco e inquieto, roendo o pé da mesa, puxando a toalha e latindo pra me provocar (depois das 22h, meu Deus!), o que culminou com nossa expulsão precoce da área social da casa antes do trigésimo minuto do primeiro tempo. Vi-me obrigada a terminar o jantar no quarto, onde me tranquei com o ridículo canino para evitar que ele destruisse qualquer coisa da casa que não fosse minha. Aliás, chegando ao quarto, num momento sublime de desapego material zen-taoísta (obrigada, Fran!), eu classifiquei rapidamente os itens expostos em dois tipos, para facilitar as coisas entre o Black et moi: isto-aqui-cê-pode-roer (grupo desapegóide um) & isto-aqui-cê-não-pode-roer (grupo apegóide dois). Enquanto eu terminava meu jantar, ele roeu um chinelo, um boné e uma almofada do grupo um, e quando eu o proibí de roer meu pé, ele começou a falar muito alto, com aquela voz grossa de cachorro ridículo, e eu tive de apagar correndo todas as luzes pra gente dormir bem quietinho. Ele caiu feito um pato e levou só 2 minutos pra roncar e roubar todo o meu cobertor, um recorde absoluto entre os machos de todas as espécies com que já me deitei no sentido horizontal não-bíblico (a saber, humanos, felinos, bovinos, eqüinos, suínos e caninos: sim, eu sou muito vivida, muito deitada e muito não-bíblica!).
Às três horas da madrugada fria, o peludo me acordou com um sonoro pum tão pestilento que me revirou o estômago no meio de um lindo sonho dourado: o ravioli, obviamente, havia deixado sérias seqüelas nas últimas quatro horas de seu trânsito intestinal, e eu tive de levá-lo urgentemente à rua para o alívio peristáltico. Fomos -- eu, de pijama e casaco de neve, e ele de capa de chuva; meu estômago embrulhava só de pensar em dormir com um cachorro de 35kg que não usaria papel higiênico nem chuveirinho depois de exorcisar a massa fecal que já se anunciara ameaçadoramente em formato-presságio de flato traumato-dilacerante. Tentei convencê-lo a ficar só no xixi, mas no que eu ia abrindo a boca pra iniciar meu discurso de contenção de divisas, ele começou a dar mil voltinhas em torno do próprio eixo e, ploft, liberou uma jaca podre prematura grande o bastante pra fertilizar todo o sertão nordestino. Putz grila, pensei: como eu vou lavar a bunda do cachorro e usar o secador maxi-turbo em silêncio às 3 e meia da manhã? Eu torcia secretamente pra que a chuva apertasse até haver um dilúvio sem precedentes históricos, e assim, em meio ao caos, nós poderíamos voltar semi-náufragos, nadando de volta à casa, onde meus naturalmente estressados pais ficariam tão aliviados com nosso milagroso retorno que não reclamariam nem um pouco de ouvir o barulho ensurdecedor de um secador de cabelos maxi-mega-ultra-turbo na calada da madrugada. O dilúvio não veio, mas em compensação o sono voltou. Vencida pelo cansaço e pela lógica extremamente óbvia do "o que é um pum pra quem já está todo cagado?", voltei pro meu historicamente higiênico leito com o Black, onde nos deitamos de bunda suja e tudo e roncamos até o dia seguinte, quando a faxineira veio para me redimir e transformar novamente num ser humano digno da matrícula de médica veterinária da Vigilância Sanitária da Cidade do Rio de Janeiro, amém.
Às sete da manhã, acordei com latidos caninos que inicialmente se pareciam com cantos de pássaros raros numa praia deserta das Ilhas Seychelles, mas à medida que meu afilhado negão mastigava meu rosto, eu ia substituindo a fantasia do "só mais cinco minutos nesta ilha" pela dura realidade do "se não descer em cinco minutos, vou te mijar, peidar e cagar todinha". Descemos, ele perseguiu meia dúzia de gatos e gambás, comeu -- num segundo de minha distração com o troco -- metade dos pães franceses que eu levei séculos escolhendo pela temperatura, peso, porte e cor, fez um novo e assustadoramente volumoso cocô, e voltamos pra casa felizes, pra um café da manhã de dois segundos: o tempo que durou a modesta porçãozinha de ração que eu havia separado para ele na véspera. Como eu não conseguia enfiar novamente o animal arisco no banheiro para escovar os dentes comigo, porque afinal ele estava traumatizado com o banho da véspera, pedi pro meu pai ficar de olho na fera enquanto eu tinha três minutos de privacidade na frente de minha pia, e neste interim, pro meu desgoverno, o Black roeu boa parte do meu pai, fez pipi na sala e destruiu um objeto não-neutro do grupo dois.
Lembrei muito do desenho da Lilo & Stitch: a menina vai a um canil municipal para adotar um cachorro e acaba adotando um monstrinho alienígena que nem canídeo era. Eles vivem felizes para sempre, mas ela passa por maus bocados até descobrir que o nível de malcriação dele extrapolava os patamares máximos da normalidade, o que é mais ou menos o que acontece com meu afilhado negão canino.
Depois do xixi e dos gritos do meu pai, eu fiz uma mochilinha pra mim mesma e me mandei de casa, sem nem tomar banho, de pijama e casaco de neve. Devolvi o Black e me adiantei pro trabalho. Sorte que eu sou servidora pública, e como só tem maluco no serviço público, ninguém reparou que eu estava de pijama até as quatro da tarde.
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Comentário do meu pai depois d'o Black destruir um objeto não-neutro do grupo dois e demarcar nosso sofá: "Ah, ele é um bichinho lindo! Mas não traz de novo pra casa não, tá bem?". Detesto admitir, mas há certas visitas que só podem entrar na casa da gente em segredo, desde que não roam nada proibido.
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