Observações de uma corredora inconsistente.
Eu ia dizer que eu sou uma corredora indisciplinada porque eu corro semana sim, semana não (às vezes semana sim e duas semanas não), mas achei muito duro me taxar de indisciplinada: prefiro o termo mais preciso e libertário-auto-complacente “inconsistente”. Há criminosos piores que eu soltos por aí, então não serei eu mesma a me colocar no banco dos réus hediondos.
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Neste final de semana, corri uma meia-maratona. Não tudo de uma vez, é claro, mas 21km em dois dias. No mundo ideal, seria permitido correr uma meia-maratona em dois dias, e uma maratona inteira em três ou quatro. Infelizmente, as pessoas atléticas são muito rigorosas, não sei bem porquê, e têm essa mania estranha de fazer coisas que a maioria dos mortais não consegue, como correr 40 km em 2 horas (quase o tempo que se leva de carro do Leme ao Pontal na hora do hush). Ah, a chama olímpica ainda não se acendeu em mim, mas eu tenho simpatia especial por todo tipo de maluco, embora alguns modelos de maluco, como diria a Cora, devam ser apreciados à distância, como os bipolares extremóides, os materialistas preferenciais e os suicidas que te visitam no décimo segundo andar só pela chance de pular da janela enquanto você vai à cozinha pegar um copo d'água.
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Eu corro com o iPod implantado nos ouvidos. Há poucos dias, um amigo viu meus fones brancos e profetizou: Serás assaltada! Arranja outro fone! Perguntei o porquê e ele me disse que os ladrões reconhecem os fones brancos da Apple a quilômetros. Eu achei a informação estranha e desencontrada, porque pego ônibus na Central do Brasil todos os dias com esses fones nos ouvidos e nunca senti olhares de cobiça pra cima do meu radinho. Aliás, é comum ver pessoas com fones idênticos aos meus, de forma que eu me sinto extremamente protegida pelo anonimato, que nada mais é que ser igual a todo mundo. Meu amigo insistiu que é “muito perigoso, vai por mim” usar os fones da Apple fora do estreito círculo de confiança de meu condomínio com seguranças e câmeras ocultas, mas aparentemente eu venho desejando há algum tempo ter a seguinte conversa antropológica com um ladrão, que é, sem tirar nem pôr, um ser humano igual a mim:
- Passa o aipode.- Você acha correto dispor do patrimônio dos outros assim?
- Ih, o cara, aê. Essas músicas que você tem aí, no aipode: são compradas?
- Nem todas.
- Pois ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Agora passa!
- OK. You have a point.
- Quê?
- É um provérbio chinês que quer dizer: “Deus dá, Deus toma.”
- Foda-se. Você está tomando meu tempo: time is money, como se diz na China.
- OK. Tó. Vai com Deus, colega.- É nóis!
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Se eu não corresse com o iPod implantado profundamente em minhas membranas timpânicas, eu seria obrigada a ouvir gente dizendo coisas como:
- Gostosa, vou te chupar todinha!- Ê, bundão, benza Deus!
- Shhhhhhh, que saúde...
- Passa o aipode!
Ainda bem que eu passo surda e correndo por tudo isso. A música melhora a vida das pessoas que correm, além de torná-las imunes ao assalto rádio-amador.
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Descobri porque corro semana sim, duas semanas não: os primeiros 30 minutos de corrida são hardcore. Tudo dói, dá vontade de ir ao banheiro, dormir e finalmente morrer, parece que os joelhos vão sofrer fraturas avulsivas, a asma dá o ar de sua graça, mas passado o período crítico do aquecimento, a impressão que dá é que é perfeitamente possível correr pro resto da vida, sem parar.
É claro que eu nunca tentei. Não sou louca nem nada.
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Eu não sou deste tempo. Eu sou um ser humano que deveria ter sido adulto jovem na década de 70. Graças ao e-mule, gravei a trilha de Hair no meu radinho. É muito frustrante ter nascido 20 anos depois e precisar usar boné porque as pessoas de hoje em dia não entendem as outras de cabelos desgrenhados.
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Adoro correr em Miguel Pereira. Meus peludos se alongam comigo (eles são lindos quando se alongam!), e não sei porque, eles acham que eu estou brincando quando abraço a perna dobrada, alongando minha extensa musculatura glútea. É neste momento que eles cheiram, à minha revelia, todas as partes pudendas que me pertencem, achando muito engraçado eu me expor dessa forma. Pois meus peludos me tocaram uma real que eu nunca tinha percebido: o alongamento é o paraíso do voyeur, uma outra espécie de maluco que a gente deve manter a uma luneta de distância.
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Porque já estou inscrita há 3 meses, quando o otimisto fantasioso me movia, eu vou correr a meia maratona da Caixa, em 24 de junho. No entanto, algo me diz que será flórida completar o percurso sem ter de passar os meses seguintes numa cadeira de rodas. Pollyanna Moça, em meu lugar, diria: “Minha querida, o que é um aleijão temporário diante da satisfação de correr 21km e ainda ganhar uma medalha e uma banana madura por isso?”. E eu penso: essa mulé, essa tal de Pollyanna, é cafona e escrotinha... mas às vezes faz sentido.
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Eu sei que é ridículo, afinal nem corri minha primeira meia maratona, mas já estou fazendo planos de correr a maratona de Paris com meu marido inteligente, divertido, lindo e apaixonado, depois de nossa lua-de-mel nas Seychelles.
E pensar que tudo começou com uma ingênua corridinha de 21 km... (Boa noite, galera, que amanhã acordo cedo pra correr 10km: Deus ajuda quem cedo madruga!)
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