Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

domingo, junho 08, 2008

Diálogo kafkaniano

Dia desses, chegando em casa pelo estacionamento do prédio, tarde da noite, notei algo se mover no painel do carro de um vizinho. Parecia uma folha rolando com o vento, mas o fato me intrigou porque os vidros estavam fechados, logo não havia como ventar ali dentro. Aproximei-me do fenômeno paranormal lentamente e, para meu choque e horror, fui flagrada pelos olhos injetados de uma imensa barata cascuda do lado de dentro do carro. Gritei de susto e, vendo que o valente inseto não arredava pé (ou patas) da cena do crime, parti pro desafio:
- Como você entrou aí, seu verme nojento?
- Como todo mundo, ué: pela porta.

Tive engulhos de pensar numa barata daquele porte pegando carona em alguma perna de calça pra entrar no carro. Fosse minha calça, eu não só a cremaria, como também despacharia suas cinzas como lixo nuclear.

Muitas vezes nos perguntamos como acontecem os acidentes de trânsito, e ali estava, diante de meus olhos, uma causa óbvia que nenhum guarda ou promotor público valorizaria: "o condutor alega ter perdido a direção quando uma barata cascuda voou em sua direção no interior do veículo, cujos vidros estavam fechados no momento da colisão. A-han. Conta outra!" Sentindo que a preservação de vidas dependia de minha vitória verbal sobre o molusco voador, insisti:
- Saia já daí!
- Não saio!
- Saia já, senão...
- Senão o quê?
- Senão eu vou interfonar pro dono deste carro dizendo que tem uma barata em seu carro, e ele descerá com um tanque de DDT e acabará com a sua raça.
- Se você interfonar pra alguém a esta hora da noite por causa de um inseto, todos pensarão que você é maluca.
- Eu não sou maluca se meu intuito é salvar vidas.
- Maluca e fofoqueira: todos teriam pena de uma pobre coitada que passa as madrugadas a inspecionar os painéis dos carros dos vizinhos.
- Eu não estava bisbilhotando, apenas fiquei curiosa porque...
- Tá vendo: "curiosa"... Na minha terra, não há distinção entre curioso e fofoqueiro. Ninguém respeita um fofoqueiro. Aliás, os fofoqueiros não se respeitam.
- Será?... Eu não quero ser fofoqueira. Só queria ajudar, preservar vidas...
- Muito ajuda quem não me atrapalha. Vai por mim: vá pra casa e durma. Finja que foi um sonho. Eu vou fazer minha coisa e, na primeira oportunidade, pego uma carona pra fora do carro. Vai ficar tudo bem, prometo.
- Bem, se você diz... Boa noite, então, dona Barata.
- Boa noite. E cuidado com a bebida, heim! Álcool e volante, hum!
- OK, obrigada, Vossa Excelência. Passar bem.

Eu ainda teria dito "deus te abençoe" se fosse religiosa, mas achei forçação de barra, afinal era só uma barata, mas uma barata com consciência social, uma barata que prometia preservar vidas humanas.

Cheguei em casa e fui varrida por um quase-horror fóbico inexplicável de me deparar com uma barata pela frente. Dormi agarrada a uma lanterna e, de madrugada, quando tive vontade de fazer xixi, primeiro acendi a luminária da cabeceira, depois iluminei com a lanterna o espelho de luz do quarto, e fui fazendo barulho e acendendo todas as luzes da casa até chegar ao banheiro.

Se houvesse alguma barata pelo caminho, queria que ela soubesse antecipadamente que eu estava me aproximando; assim, ela teria a chance de se esconder antes de minha chegada. Preciso passar um tempo sem me confrontar com esses vermes para me recuperar emocionalmente daquela noite. Baratas são criaturas muito tinhosas, e é quase impossível vencê-las num debate.